O primeiro mês de 2015 já nos trouxe notícias chocantes do mundo e do Brasil: o ataque ao jornal Charlie Hebdo, na França; a chacina de mais de duas mil pessoas na Nigéria; o assassinato de uma criança de 11 anos por policiais, no Rio de Janeiro; a execução de um brasileiro na Indonésia, a ação truculenta da polícia de São Paulo contra as manifestações do Movimento Passe Livre e tantas outras notícias que chegam (e tantas outras que nem chegam) aos meios de comunicação. Tudo isso nos faz questionar o quanto ainda a nossa sociedade está na barbárie, o quanto ainda optamos pela violência para “resolver” situações.
Mas o convite que faço a seguir, depois de tantas manifestações de repúdio aos atos violentos das últimas semanas e, também, dos discursos em prol de uma educação para a paz que surgiram em sequência, é para refletirmos sobre o quanto nós mesmos (consciente ou inconscientemente), em algum nível, somos violentos ou coniventes com a violência.
Não me refiro à violência escancarada, trazida pela mídia e pelos noticiários sensacionalistas (que se sustentam nela) e sim àquela violência velada de cada dia, aquela que é vestida com a roupa da normalidade, que é alimentada sem intenção, que é como algo que nos foi impregnado e que nos acompanha desde cedo.
Violências historicamente veladas, das mais diversas ordens, ainda moldam o nascimento, a educação, a vida profissional, a criação dos filhos. E, de alguma maneira, reforçamos essa trajetória a cada geração, quando não enxergamos e reproduzimos mecanicamente o que nos foi legado.
Sob o olhar de muitos é normal ver uma mãe ou um pai gritar com o filho pequeno e até agredi-lo fisicamente. E quantos adultos se reportam ao fato de terem apanhado enquanto crianças como algo que foi positivo, que contribuiu para melhorar seu caráter!
No livro “Coração do Homem”, uma das obras de seu largo estudo sobre a destrutividade humana, o brilhante psicanalista Erich Fromm aborda a dualidade do homem e suas escolhas para o bem ou para o mal. Ele aponta diferentes formas de violência, suas causas, consequências e patologias no âmbito do indivíduo e da sociedade. Nessa mesma obra, Fromm fala sobre o “desmoronamento da fé” como uma das fontes que desencadeiam certos tipos de ações violentas. E, segundo ele, esse desmoronamento acontece com frequência na mais tenra idade.
Fromm exemplifica falando da fé dos bebês, defendendo que uma criança inicia a vida com a fé na bondade, no amor, na justiça. O bebê tem fé nos seios da mãe, na sua disponibilidade para alimentá-lo quando precisa, para aquecê-lo quando sente frio, para confortá-lo quando sofre alguma enfermidade. A criança tem fé que a protejam quando se sentir temerosa ou ameaçada, que terá um suporte emocional quando se sentir angustiada ou frágil. Pestalozzi dizia que é dessa fé na mãe, que nasce depois a fé numa Providência divina. Infelizmente, na maior parte dos casos, os próprios pais demolem essa fé das crianças ao tentarem condicioná-las a seus ritmos, costumes e crenças.
Se examinarmos a criação e educação que nossos pais e avós tiveram e como a utilizaram para nos criar e educar (pois era a referência pessoal que tinham), é claro que vamos identificar marcas moldadas pelos costumes que defendem que a criança precisa ser limitada, treinada e até castigada para “aprender a ser gente”. Deixo claro que não é minha intenção aqui fazer julgamentos, acredito que a maioria de nossos pais agiu de acordo com o que acreditava ser o melhor para nos educar. O meu objetivo é reforçar a importância de olharmos para o passado e percebermos como ele, de alguma forma, ecoa na nossa vida no presente e o quanto marca as nossas relações.
Lembro de um vídeo que assisti de Paulo Freire no qual ele foi interrogado sobre a questão da liberdade face à educação que deu a seus filhos e brilhantemente ele disse que, após tomar consciência do que isso representava, exclamou para si mesmo “Paulo, a tua liberdade de filho é o que vai ensinar a tua autoridade de pai.”
Um breve passeio pela história da educação e pela história da infância e da família nos mostrará o quanto a violência moldou os métodos de ensino e a criação de crianças e jovens durante séculos. Por isso, é necessário nos vermos como herdeiros desse contexto histórico-cultural que mantém sistemas de crenças embebidos de violências veladas e, munidos dessa perspectiva, buscar mecanismos internos e externos que possam romper com esses ciclos.
Todos falam muito da necessidade de uma educação para a paz a fim de combater a violência. Mas que educação para a paz é essa? E o que ela implica? Onde começa? Recorro ao grande educador Paulo Freire para responder:
De anônimas gentes, sofridas gentes, exploradas gentes aprendi sobretudo que a Paz é fundamental, indispensável, mas que a Paz implica lutar por ela. A Paz se cria, se constrói na e pela superação de realidades perversas. A Paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça. Por isso, não creio em nenhum esforço chamado de educação para a Paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças o torna opaco e tenta miopizar as suas vítimas. (Discurso ao receber o prêmio da UNESCO em Paris – setembro de 1986)
Que a nossa educação para a paz seja aquela que luta para sair da miopia de cada dia, de cada memória, de cada história, de cada gesto que turva e deixa estático o que precisa ser transformado. Que seja aquela que não faz desmoronar a fé do outro e que supera a violência dentro e fora de nós.
Danielle Morais Feitosa
Interessante este artigo. Concordo com a ideia de que a violência vem sendo repetida e alimentada displicentemente dentro dos nossos lares pela repetição de padrões socioculturais e familiares.
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Danielle, obrigado pelo texto. Bastante oportuno para nossa atualidade. Compartilhei-o numa conversa no Facebook sobre a declaração do papa em ser favorável à palmada, ele enriqueceu nosso papo. =)
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