Já Rousseau propunha uma educação sem instrumentos de coerção, em que a criança aprendesse apenas pela força da curiosidade e da necessidade. Aliás, falava de uma “educação negativa” em que se preservasse o educando de influências sociais corruptoras e em que ele pudesse desabrochar livremente sua bondade essencial.
Tolstoi, anarquista cristão, também com influência de Rousseau, questionava o próprio direito de educar, porque haveria para ele sempre uma modelação exterior. Pregava a auto-organização dos alunos, com quase ou nenhuma interferência dos adultos, tendo feito uma experiência nesse sentido em sua escola na Fazenda Iasnaia Poliana, nos anos 60 do século XIX.
Depois de Montessori no século XX anunciar que a criança tem uma “mente absorvente” e, hoje, a neurociência demonstrar que o desenvolvimento do cérebro, com suas sinapses, depende dos estímulos externos, das ligações afetivas, portanto das influências do meio – fica claro que a não-diretividade na Educação não significa ausência de Educação e nem renúncia a ela. Porque a criança se desenvolve a partir de suas interações com o meio e, por isso, esse meio tem que ser pensado, preparado e adequado a esse desenvolvimento.
Tudo isso para dizer que, mesmo que queiramos – e assim queremos numa educação livre – renunciar à educação como forma de exercício de poder autoritário, a educação sempre terá um poder de transformação – sim, não apenas daqueles que são educados, mas também dos que educam.
Esmiucemos melhor. Quando queremos uma educação livre, estamos nos referindo sobretudo aos seguintes pontos:
- à renúncia completa das estratégias coercitivas (punição, castigo, nota, violência verbal, violência psicológica, expulsão, etc.). Essa renúncia pode ser institucional ou individual – do educador apenas, se ele se encontrar numa instituição adversa a essa proposta.
- ao reconhecimento e ao incentivo da autonomia do educador e do educando, cada qual podendo desenvolver seus talentos, pesquisar seus interesses, construir seu conhecimento, de forma livre, individual e em parcerias com outros educandos e educadores autônomos.
- à renúncia a todo processo de doutrinação ideológica, seja confessional, filosófica ou política, porque a educação livre deve preparar o ser humano pensante e não catequizado, seja no que for.
Mas, em toda educação, para além do conhecimento autonomamente construído, existe algo que permeia as relações humanas: valores, gestos, olhares, vibrações, emanações, emoções, contágios. Aí, reside um poder a que não se pode fugir no ato pedagógico. O educador pode ser democrático, respeitar a personalidade dos educandos, pode combinar as regras, pode incentivar a autonomia e a criticidade. Apesar disso e também através disso, ele exerce uma influência inegável sobre os educandos. Aí reside sua missão, sua responsabilidade, seu poder. Algo que ele deve usar com cuidado, com ética, com humildade, com despojamento, mas com plena ciência do que está fazendo, porque senão não haveria mais um campo de atuação, chamado educação. Mesmo não querendo influenciar, ele influencia, por isso deve cuidar para que essa influência seja nobre, seja transformadora, mas não modeladora.
No exercício desse poder, que reside na própria função educativa, há diversas maneiras de se apossar da mente dos educandos, tornando-se assim um poder que se impõe e aprisiona, ao invés de abrir horizontes e libertar. Por exemplo, a sedução desonesta. Digo desonesta, quando há estratégias de manipulação, – porque a sedução em si, mas uma sedução pelos ideais, pelo entusiasmo, pela autenticidade, essa faz parte do papel do educador. Sem ela, não haveria como contagiar os educandos e despertar-lhes caminhos novos, que eles próprios escolherão seguir ou não.
Com as crianças, então, há que se ter um cuidado sagrado, para que o ato pedagógico esteja nos caminhos da liberdade, com uma influência marcante, amorosa, cheia de respeito para com o educando, que não tem defesas psíquicas diante do ser gigantesco que lhe aparece como exemplo e âncora na realidade que a circunda.
Muito bem! Posto isso tudo, como pretendemos aplicar esses pontos na Universidade Livre Pampédia? Entendendo-se que existe uma diferença entre praticar uma educação livre com crianças e com adultos. Com as primeiras, os educadores precisam estar embebidos desse parâmetro de liberdade, amor e respeito, de cuidados delicados, para educar sem impor, contagiar sem manipular. Com os adultos, há que se seguir os mesmos princípios, em outro contexto. O adulto ainda pode ser manipulável, mas já possui maiores defesas psíquicas e está diante do professor, como igual em tamanho, embora nas instituições tradicionais ainda exista muita hierarquia opressora, que desqualifica o aluno de uma posição pensante e autônoma.
Como fazemos aqui para implementar aqueles 3 pontos, mencionados lá em cima?
- institucionalmente, eliminando estruturas de castigo e recompensa, como notas, certificados, exclusões e permitindo a criação de regras de convivência combinadas.
- Criando itinerários de pesquisa, produção e aprendizagem livres, estimulados e orientados por tutores (essa é proposta que estamos montando).
- Oferecendo diversos pontos de vista, correntes filosóficas, religiosas, políticas, de modo que os alunos possam ouvir, entender, discutir e pensar por si próprios, aprendendo a respeitar a diversidade de pensamento e construindo sua visão de mundo com maior convicção, porque possuidores de um maior repertório de posições.
Mas como se garante aquele contágio honesto e que não manipula, que não quer seduzir e dominar a qualquer custo? Primeiro, os adultos têm maior possibilidade de enxergar, sobretudo numa instituição que permita o diálogo, quando o discurso é ofensivo ao bom senso e quando o professor se comporta de maneira desonesta. Segundo, institucionalmente falando, trata-se de manter uma rede de educadores, que tenham uma trajetória existencial autêntica, um conhecimento consistente, com uma racionalidade bem construída, que apresentem um engajamento existencial com suas ideias. Ou seja, que não sejam vazios discursadores, mas idealistas engajados nas próprias convicções.
Felizmente, o maior patrimônio de partida da Universidade Livre Pampédia é a sua rede de professores, muitos também autores da Editora Comenius, a maioria vindo conosco há muitos anos.
Todos possuidores de discursos diferentes, às vezes manifestados de forma mais calma ou mais arrebatada; mais analítica ou mais emotiva… mas sempre discursos consistentes, convictos, contagiantes, que tornam a Universidade Livre Pampédia, de fato, plural.
Dora Incontri