Um jovem de 21 anos, Kal Turnbell criou há alguns anos uma página numa rede social (Reddit) chamada Change My View (mude meu ponto de vista), onde as pessoas podem mudar calmamente e racionalmente as mentes de outras pessoas. Hoje a página conta com mais de 300.000 membros e é objeto de vários estudos acadêmicos sobre a dinâmica da comunicação humana, entre outras áreas. Em uma entrevista recente, Turnbell diz que o segredo do grupo são as regras que eles desenvolveram ao longo dos anos.
O objetivo de estabelecer regras para o diálogo é limpar as cargas emocionais que impedem a troca. Já falei aqui sobre o diálogo como antídoto para a agressividade, mas no caso do Change My View, não se trata de empatia, se trata de abertura para outros olhares. Abaixo fiz uma adaptação das regras com alguns exemplos:
A PRIMEIRA REGRA é explicar as razões que estão por trás da sua visão, não apenas o que essa visão é. Não basta afirmar que o salário mínimo deveria ser abolido, ou que comer carne é imoral, é preciso dizer por que você acredita nisso. Mas nessa regra tem uma ressalva – não é permitido citar o pensamento de outras pessoas ou as estatísticas e fatos externos que provam sua hipótese. É preciso formular uma explicação que seja exclusivamente sua. É claro que a sua visão foi construída muitas vezes por fatos e estatísticas, mas esse exercício de escolher as próprias palavras tem dois objetivos: tira o peso do argumento de autoridade (de alguém de fora que fala por você), e obriga você a pensar sobre os fatos que ajudaram a construir o seu ponto de vista.
A SEGUNDA REGRA é a mais importante, mas também a mais óbvia: ao mesmo tempo que você deve manter sua posição, deve estar disposto a mudá-la. Kay explica que essa regra serve para impedir que pessoas que não acreditam em uma determinada ideia, finjam defendê-la apenas para provocar. Ele mapeou 3 tipos de pessoa que entram no site – as abertas à mudança, as que só querem afirmar seu ponto de vista (que são barradas pela segunda regra), e as que acreditam que são abertas, mas que quando confrontadas com ideias diferentes das suas, se fecham na sua perspectiva inicial.
Ele explica que para esse terceiro perfil, participar de um diálogo guiado serve como uma oportunidade de conhecer os argumentos e as experiências concretas que se contrapõem às suas crenças. Essa exposição serve como uma inoculação lenta que vai permitir uma leitura mais rica da realidade em futuras argumentações.
A TERCEIRA REGRA é sobre a disponibilidade para o diálogo. Se você postar um ponto de vista sobre qualquer assunto, é preciso que você esteja disposto a responder cada interação e comentário que surgir. Afinal o objetivo do Change My View é exercitar o diálogo.
A QUARTA REGRA é sobre as respostas aos pontos de vista propostos e às tréplicas e seguintes trocas. Cada interação deve se contrapor a pelo menos um dos argumentos usados no post original. Resumindo – não é para dizer “concordo”, “falou tudo”, “meu herói”, nem dizer “quanta bobagem”, “está passado vergonha”, “tinha que ser um … pra falar essa bobagem”. O foco não é diminuir o argumento do outro como um todo, muito menos diminuir o outro como pessoa, mas sim se contrapor ao argumento que o outro usou para explicar o seu ponto de vista.
A QUINTA REGRA é sobre agressividade. Não é permitido nenhum tipo de hostilidade, em nenhum grau. Muitas vezes até reconhecemos que xingamentos são expressões de agressividade, mas existem algumas sutilezas que também servem para diminuir o outro. Dizer por exemplo que “faltou capacidade de interpretação de texto da parte de fulano” é sim agressivo. É possível chegar no mesmo ponto dizendo que “o texto diz isso (explicação com outras palavras para ajudar a compreensão), que é muito diferente de dizer que o texto diz aquilo”. IMPORTANTE – dizer que outro foi agressivo primeiro não serve como argumento para violar essa regra.
A SEXTA REGRA fala sobre o argumento que rotula o outro de INCOERENTE. Talvez essa seja a regra mais sensível desse exercício de diálogo. Muitas vezes, a partir do nosso ponto de vista, nós identificamos na fala do outro uma incoerência , por exemplo: “é homossexual e racista”, ou “é de esquerda e tem iPhone”, ou ainda “defende a meritocracia mas nunca estudou em escola pública”. Apontar essa incoerência e usar isso como um argumento no diálogo apenas serve para diminuir o outro, numa tentativa de apontar a fragilidade de seu argumento, apontando uma fragilidade no seu comportamento. É preciso ter em mente que todos nós somos incoerentes em algum (ou em vários) pontos, e que o que está em jogo são os argumentos que usamos para defender ideias tão dispares dentro de um mesmo sistema de pensamento.
Ao elaborarmos as razões com as nossas próprias palavras (PRIMEIRA REGRA), nós somos forçados a usar a razão e a lógica para justificar nosso ponto de vista. Se nessa tentativa a nossa incoerência for inconciliável, isso vai naturalmente transparecer. Se vamos para o diálogo dispostos a mudar de opinião, é esse exercício interno que vai nos mover de um lugar para o outro. E é por isso que a escuta sem julgamentos (sem rótulos) que o outro pode me oferecer é fundamental para que eu me sinta seguro e faça esse mergulho no frágil terreno da incerteza.
Essa e outras iniciativas como a Escola de Diálogo em São Paulo, e a Universidade Livre Pampédia em Bragança Paulista, nos ajudam a depormos as armas que nos dão uma sensação falsa de segurança, para construirmos relações sem medo. Que a educação básica e fundamental possam também abraçar essas ideias! Essa é a nossa luta!
Mauricio Zanolini
Parabéns, excelente artigo! As vezes nos colocamos na posição de criticar o que está acontecendo nas redes sociais mas também estamos numa posição de ataque. A participação qualitativa é bem mais interessante e o grande desafio. Vou ler e reler o artigo e acho que vou ficar sem comentar nada um tempinho, até absorver melhor! Obrigada por trazer essa excelente reflexão, inclusive sobre a Reddit que nunca tive interesse, pois já são tantas as redes sociais que a gente acaba até fugindo delas, justamente pelo motivo do teu artigo. Mas vou repensar, essa parece interessante. Obrigada Maurício!
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