O antropólogo Roberto Damatta, em recente artigo, faz uma análise do conceito histórico e social de EDUCAÇÃO que temos no Brasil. Ele vê dois sentidos – instrução/conhecimento e refinamento/boas maneiras. Para ele existe uma hierarquia nesses dois sentidos que privilegia o refinamento em detrimento da instrução. As boas maneiras estariam ligadas ao berço (hereditariedade nobre), ao círculo social e à condição econômica, e a instrução seria uma necessidade ligada ao mundo do trabalho. Como essa distinção é culturalmente arraigada, ela é dos maiores entraves para uma educação democrática.
As explicações para que tenhamos esse conceito de EDUCAÇÃO passam pelos séculos de escravidão, pelo império importado de Portugal e seus títulos nobiliárquicos, pela desigualdade social e pela falta de democracia na maior parte de nossa formação, enquanto nação. São consequências dessa herança a carteirada, o você sabe com quem está falando?, a cervejinha, o padrinho e todas as outras características negativas do famoso jeitinho brasileiro. Mesmo para um projeto econômico liberal, meritocrático e competitivo (modelo que os críticos das políticas consideradas de esquerda tanto almejam), temos dificuldades essenciais, já que para ser implantado tal modelo, precisamos de um sistema educacional universal. Nosso conceito de EDUCAÇÃO é essencialmente anti-democrático, e portando não pode ser para todos.
O recente texto do Secretário de Educação, José Renato Nalini, publicado no site da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (no dia 5 de abril de 2016) ilustra bem a dificuldade que temos de aproximar o conceito de democracia do conceito de EDUCAÇÃO. Para Nalini numa sociedade onde “predomina o egoísmo, o consumismo, o êxtase momentâneo por sensações baratas, a ilusão do sexo, a volúpia da velocidade, o desencanto e o niilismo“ o Estado deve atuar à distancia, apenas regulando, sem tomar para si a responsabilidade pela garantia de direitos. Fica claro no texto do Secretário que ele vê a sociedade brasileira como uma criança mimada que busca segurança num Estado paternalista. Para ele, “tudo aquilo que antigamente era fruto do trabalho, do esforço, do sacrifício e do empenho, passou à categoria de” direito fundamental.
Já a academia, os teóricos da educação, os catedráticos mestres e doutores, inebriados de materialismo histórico, forçam a mão. O ex-ministro da Educação e filosofo Renato Janine Ribeiro, quando ainda exercia o cargo, trouxe a público o estranho caso do conteúdo de História proposto pelo MEC para a Base Nacional Comum (BNC), que depois de longas deliberações eliminou quase completamente tudo que não fosse sobre o Brasil e a África. Outro exemplo emblemático é a proposta de diminuir a importância ou até suprimir o ensino da gramática, motivado pela ideia de que a norma culta da língua é uma imposição da cultura hegemônica.
Iniciativas como a Escola sem Partido, que persegue o que eles chamam de “doutrinação de esquerda” nas escolas, propõe medidas de controle, recorrendo a expedientes nada democráticos. O argumento dos adeptos dessa ideia imaginam um cenário em que alunos seriam estimulados a denunciar professores, que seriam presos se manifestassem suas posições políticas, religiosas e valores pessoais em sala de aula. Nada mais distópico, já que a interação entre educadores e educandos é uma relação humana, carregada de afetos, curiosidade, cumplicidade e troca.
Para o Secretário Nalini a essência do ser humano é degenerada. A criança egoísta precisa sofrer para aprender, sem ajuda. Para os teóricos acadêmicos o homem é o lobo do homem. Os oprimidos devem impor sua presença e tomar seu espaço, nem que para isso tenham que reescrever/editar a História, apagando ou anulando tudo o que for ou parecer hegemônico. Ambos os lados acusam o outro de ideológico e se percebem como defensores do pensamento crítico. Mais uma vez nenhuma dessas duas leituras de mundo são remotamente democráticas.
Voltamos ao ponto de Roberto Damatta – democracia é educação. Só a complexidade da convivência com o outro, o exercício da tolerância, a consciência da igualdade essencial entre os seres humanos, nos fará sair do universo binário, no qual estamos afogados. Nós contra eles, esquerda versus direita, coxinhas e mortadelas, são apenas respostas emocionais da nossa incapacidade momentânea de avançar rumo a um mundo mais justo. Reconhecermos a nós mesmo como seres sociais fortemente inclinados à cooperação e ao cuidado como o outro, desconstruindo a ideia rasa da prevalência do individualismo e da sobrevivência do mais forte – esse é o verdadeiro caminho da EDUCAÇÃO.
Mauricio Zanolini
Que texto interessante. E muitas vezes, quando nos descuidamos e nos deixamos levar pela emoção, somos envolvidos por esse universo binário, e entramos nessa onda de coxinhas e mortadelas.
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