A manifestação de estudantes de uma escola pública, numa cidade de Goiás, foi tema de uma matéria exibida ontem em certo telejornal. Os alunos do sexto ao nono ano se rebelaram, quebrando várias partes da estrutura física da escola. Uma das primeiras perguntas que vem à mente é “qual foi o estopim da rebelião?”. Não se sabe, ninguém perguntou para os envolvidos. A única informação é que eles possivelmente se revoltaram com o fato da nova diretora da escola ser mais “rígida”. O único depoimento que temos de quem estava lá são as imagens de celular feitas por um dos alunos, que registrou os gritos de “tira a diretora”.
O mais chocante é que, na sequência da matéria, vem o comentário do jornalista Alexandre Garcia, dizendo de forma pejorativa que esse é o resultado do que esses jovens têm aprendido com o movimento das ruas, ou seja, com as manifestações, com as greves dos professores. A abordagem da matéria televisiva e do comentário traduz o viés simplista que, enquanto sociedade, temos escolhido para falar da educação, da violência, do exercício da liberdade.
Os protagonistas da manifestação dessa escola eram os jovens; e eles não foram ouvidos. Os protagonistas das greves de professores são os educadores; e eles não são ouvidos. O Estado oprime e cala quando pune os alunos que praticaram uma violência contra o patrimônio da escola; eles serão punidos pelo que fizeram e não haverá um aprofundamento da questão. O Estado também oprime e cala quando causa um cenário de guerra ou quando exonera cinquenta policiais que se recusaram a atirar contra grevistas no Paraná. Ou seja, a violência é tratada como absurdo ou usada como arma, dependendo de como for conveniente para o opressor.
A pouca ou nula oportunidade de manifestação e de integração de todos os atores que conectam essa rede da Educação gera desprestígio e opressão por parte daqueles que têm o poder de decisão. E a impossibilidade de um diálogo explode em violência por todas as partes.
A partir dos princípios da não-violência, nenhum ato violento é justificável; a violência não pode, em hipótese alguma, ser naturalizada. Segundo o filósofo Jean-Marie Muller, é fundamental que se identifique a fonte da violência e que ela seja definida a partir da perspectiva de quem a sofre. “Qualquer violência é um processo de homicídio, de aniquilação. Talvez, o processo não vá até o fim, porém, o desejo de eliminar o adversário, afastá-lo, excluí-lo, reduzi-lo ao silêncio, suprimi-lo irá tornar-se mais forte do que a vontade de chegar a um acordo com ele. Do insulto à humilhação, da tortura ao homicídio, múltiplas são as formas de violência e múltiplas as formas de morte. Atentar contra a dignidade do homem é o mesmo que atentar contra sua vida. Usar da violência é sempre obrigar o outro a calar-se, e privar o homem de sua palavra já é privá-lo de sua vida.”
Ao mesmo tempo, para Muller, também é preciso compreender a violência que brota da revolta dos oprimidos. “Na maioria dos casos, a violência dos oprimidos e dos excluídos é mais um meio de expressão do que um meio de ação; é mais a reivindicação de uma identidade do que a busca por uma eficácia. É o meio utilizado para serem reconhecidos aqueles cuja própria existência permanece não só desconhecida como também ignorada. A violência é assim o meio de se revoltar contra o fato de serem ignorados. Ela é o meio de expressão extremo daqueles que foram privados pela sociedade de todos os demais meios de expressão. Dado que não tiveram a possibilidade de comunicar-se por meio da palavra, tentam exprimir-se por meio da violência. Esta toma o lugar da palavra que lhes é recusada. A violência quer ser uma linguagem e exprime, em primeiro lugar, um sofrimento; ela é, então, um ‘sinal de desespero’, que deve ser devidamente interpretado pelos demais membros da sociedade. Para os excluídos, a violência é uma tentativa desesperada de se reapropriar do poder sobre a própria vida, poder este que lhes foi retirado.”
O quanto de violência e opressão diária aconteceu, tanto com educandos quanto com educadores, para que situações como essa se agravassem e eclodissem num cenário de destruição e caos? A atenção a esses questionamentos propostos por Muller a respeito da perspectiva da violência – a que é opressora e a que é fruto da opressão – pode nos ajudar a não engolirmos um discurso mais fácil de ser digerido.
Luísa Modena Dutra