Abuso sexual de crianças, a internet e os traumas que nos cegam

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Pra ler esse texto é preciso ter um estômago não muito sensível. Os vídeos que embasam o texto trazem casos concretos de umas das coisas mais abjetas que um ser humano é capaz de fazer – destruir psicologicamente o resto da vida de outro ser humano. E no entanto essa prática – o abuso sexual de bebês, crianças e adolescentes – é respaldada pela tradição (o machismo aqui é a chave), pelo anonimato das redes sociais, e pelo alto índice de adoecimento mental que a sociedade contemporânea estimula e acoberta. Pior ainda, é um assunto que escolhemos não ver porque é doloroso, porque nos faz pensar sobre nossa própria infância e suas feridas ainda abertas.

O National Center for Missing and Exploited Children (Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas), nos Estado Unidos, levantou os dados sobre a quantidade de imagens e vídeos de crianças abusadas sexualmente que foram disponibilizados na internet em 2018 – 45 milhões (120 mil por dia). O levantamento anterior a esse foi feito em 2008 e já era considerado uma epidemia. Há dez anos esse número era de 600 mil por ano (1.600 por dia). O problema é que na última década, o  Nacional Center não recebeu nenhuma verba para sequer continuar monitorando o assunto.

Quem ajuda a reverter esse quadro são organizações não-governamentais com a THORN, que em parceria com o National Center for Missing and Exploited Children, vem desenvolvendo softwares de detecção de imagem para que as grandes e pequenas empresas de tecnologia como Google, Facebook, Bing e Imgur possam tirar de suas plataformas esse conteúdo. Como o negócio dessas empresas é vender para seus clientes meios “seguros” de trocar mensagens com outros usuários, o custo de verificar e classificar o conteúdo que passa pela sua rede social é considerado um prejuízo. Sem a THORN esse trabalho não seria feito. No video abaixo Julie Cordua fala sobre o trabalho da ONG:

Mas outros dois aspectos são essenciais para entendermos a dimensão do abuso sexual de bebês, crianças e adolescentes. Um deles é a nossa relação com o sexo. São tantas as proibições, os tabus, os rótulos negativos que são impostos pela nossa cultura sobre a sexualidade (especialmente sobre a sexualidade das mulheres), que o diálogo sobre o assunto é completamente travado. Mesmo que o século XXI seja muito mais aberto que o século XX em relação à diversidade sexual e ao acesso à informação, na prática, os pais não sabem, não conseguem, não querem conversar com seus filhos sobre sexo, sexualidade, sobre conhecer o próprio corpo, etc.

A internet criou um problema inédito – qualquer indivíduo pode ter acesso a qualquer outro usuário da rede em qualquer lugar do mundo, e esse contato é totalmente privado (protegido por senha, dentro de um perfil pessoal numa rede social). Esse novo modo de interação entre as pessoas não pode ser controlado, nem pelos pais nem pelo Estado. As primeiras gerações de pessoas que viveram sua adolescência dentro desse novo modo de interagir, hoje são jovens adultos. Eles foram os primeiros a expor sua sexualidade em fotos e vídeos que foram vistos (e continuam sendo vistos) por milhares de pessoas ao redor do mundo. E dentro desse grupo de pessoas que viveram essa experiência, os números de ideação suicida, tentativas de suicídio e de morte por suicídio são altíssimos.

Sebastián Bortnik que trabalha com segurança digital, fala no vídeo acima sobre a urgência de entendermos que a internet não é um mundo virtual (de mentira). Para ele, assim como quando ensinamos uma criança a andar sozinha na rua para ir até a escola, primeiro a levamos pela mão e mostramos todos os procedimentos e a atenção necessária para desempenhar tal tarefa, o mesmo deve ser feito em relação ao uso das redes sociais. E conversas sobre sexo, sexualidade e consequências da exposição do próprio corpo em plataformas digitais são fundamentais nesse processo.

O segundo aspecto essencial nos ajuda a olhar de forma mais ampla para o tema – o que a ciência no diz sobre os efeitos do abuso sexual em bebês, crianças e adolescentes? A pediatra Nadine Burke Harris nos mostra (no vídeo abaixo) que o trauma causa mudanças no desenvolvimento do cérebro e em casos mais severos altera nosso DNA. Essas duas consequências são muito mais acentuadas quando o trauma acontece na fase de desenvolvimento do corpo e do cérebro, e os efeitos dessas alterações são uma maior propensão ao desenvolvimento de doenças crônicas e de doenças mentais.

Na experiência dela, uma vez constatada a relação entre trauma infantil e doenças ao longo da vida adulta, considerando o alto custo dos tratamentos por décadas que essas doenças demandam, a resposta lógica e óbvia seria prevenir tudo que tem relação com o trauma na infância. Mas o que ela encontrou foi o silêncio, a negação das evidências, a relativização das conclusões. Olhar para algo que percebemos como bom (que vem de nossos pais e responsáveis que nos amam) e entender que aquilo está errado, que tem consequências terríveis, é muito difícil.

E é sobre esse aspecto que podemos inverter essa narrativa e olhar para aqueles que acessam essas imagens, abusam sexualmente de bebês, crianças e adolescentes e distribuem fotos e vídeos desses abusos nas redes sociais. Essas pessoas também foram abusadas, também têm doenças mentais graves.Nosso impulso em relação a essas pessoas é classificá-las como monstros, predadores, pessoas sem sentimentos, sem humanidade, mas eles são seres humanos como nós. Se chegaram nesse ponto, se têm esse tipo de comportamento, existe uma causa, existe um (ou muitos) traumas que explicam (embora não justifiquem) esse comportamento.

Então temos essas três questões para superar. A primeira é nosso olhar preconceituoso em relação à sexualidade. Não falamos com nossos filhos sobre masturbação,  pornografia, exposição do próprio corpo e desejo sexual. Muito menos conversamos com eles sobre os riscos das redes sociais e o problema do adoecimento psíquico que leva pessoas a mentir e manipular. O segundo é a sobre a percepção que temos sobre nossa própria infância. Precisamos entender os traumas que carregamos para perceber os pontos cegos que nos fazem negar evidências para defender coisas que, no passado, não percebíamos como negativas. E por fim, diante de atitudes abjetas, nossa reação é eliminar o outro, encarcerando, linchando, cancelando, matando. Rótulos e punitivismo não vão nos levar a lugar algum. Apenas vão manter um círculo vicioso de novos abusadores que foram abusados, enquanto a sociedade fica em silêncio por medo, culpa ou lealdade.

*todos os vídeos tem legendas em português

 

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