Imaginem a seguinte situação: as aulas de matemática do ensino fundamental trabalham coleta de dados estatísticos e os professores mostram as possíveis maneiras de se manipular a opinião das pessoas que vão ver os dados, dependendo da forma como eles são apresentados. Outra situação: um dos projetos da escola é preparar os alunos para conduzir entrevistas com vereadores do seu distrito, atentos às tentativas dos políticos de se esquivar das respostas, preparando-os para checarem tudo o for declarado. Talvez essa seja a reforma no currículo mais importante para esse início de século, mas com certeza não é no Brasil.
No teste do PISA de 2018 (o resultado saiu no final de 2019) apenas 2% dos jovens brasileiros conseguiram diferenciar num texto o que era fato e o que era ficção. Poucos países do mundo tem altos índices de compreensão de texto e por isso a média mundial é muito baixa – apenas 9%. Mesmo países como os Estados Unidos têm números assombrosos. Por lá, apenas 14% dos adolescentes de 15 anos consegue diferenciar fato de ficção/propaganda/opinião. O teste que os norte-mericanos fizeram apresentava dois textos, um era uma notícia de jornal sobre a indústria de laticínios e o outro era um texto de uma associação de produtores de leite falando sobre os benefícios dos seus produtos. Na sequência, algumas afirmações foram apresentadas e os estudantes tinham que dizer se eram fato ou opinião. Um exemplo: beber leite e derivados é a melhor maneira de se perder peso. E 86% dos estudantes não conseguiram ler o texto corretamente.
O interessante do caso norte-americano é que nas últimas décadas o sistema educacional deles passou por diversas reformas. Criaram um currículo nacional para balizar os currículos dos Estados. Implantaram provas para avaliar o desempenho dos alunos em habilidades essenciais como leitura, matemática e ciências. Aumentaram o volume de dinheiro direcionado às escolas, criaram programas de incentivo salarial para professores de turmas com bons desempenhos em testes, colocaram os melhores alunos das universidades para lecionar. O resultado de todo esforço é que em 20 anos os índices de proficiência em leitura não melhoraram.
Diante desse cenário, qual é o próximo passo? Temos aqui dois caminhos possíveis para fazer uma avaliação. Um deles é nos perguntar o porquê. Se todas essas mudanças não fizeram diferença na qualidade e portanto no resultado dessa relação entre ensino e aprendizagem, será que existe algo mais essencial que não foi olhado? O outro caminho é assumir que todas as ações que foram tentadas são ineficazes, o que leva à conclusão de que elas têm que ser descartadas e substituídas por um outro modelo (de preferência um modelo completamente oposto). Nos Estados Unidos, com a troca de partido no poder (de Obama para Trump) a segunda opção foi abraçada. Cortes no financiamento das escolas e terceirização / privatização da gestão são a nova ordem para melhorar os índices de proficiência. Ainda é cedo para saber os resultados dessa nova abordagem, mas um coisa é certa, ela não mexe na essência da questão.
Enquanto isso, na Finlândia, um dos países com os mais altos índices de compreensão de texto, desde 2016 o currículo das escolas é estruturado no acesso a conteúdos em diferentes plataformas, trabalhado de forma interdisciplinar e crítica. Em 2014 o governo finlandês foi alvo de ataques da Rússia através de campanhas de desinformação nas redes sociais. Para se proteger dessa nova modalidade de guerra de informação os finlandeses decidiram reformar o sistema educacional para que seus cidadãos não sejam vulneráveis a isso.
Desde o ensino básico as crianças entendem que existem tipos diferentes de desinformação: informações erradas, informações mentirosas (deliberadamente disseminadas para enganar), e fofocas (informações que podem estar corretas mas que têm a intenção de prejudicar). Nas palavras de Kari Kivinen, professor responsável por implantar esse novo currículo:
“Mesmo crianças bem pequenas podem entender isso”, disse ele. “Elas adoram ser detetives. Se você também as questiona sobre jornalistas e políticos da vida real sobre o que é importante para elas, realiza debates simulados e eleições escolares reais, pede que elas escrevam relatórios precisos e falsos sobre tais eleições … a ideia de democracia e as ameaças a essa ideia começam a fazer sentido para elas. “
Ele quer que seus alunos façam perguntas como: quem produziu essa informação e por quê? Onde foi publicado? O que isso realmente diz? A quem se destina? Em que é baseado? Existe evidência para isso ou é apenas a opinião de alguém? É verificável em outro lugar? Aquelas atividade que eu descrevi no começo do texto sobre dados estatísticos na aula de matemática são uma decorrência dessas intenções.
Então pra amarrar tudo, a reforma que mexe profundamente na educação é acreditar que a criança tem nela o potencial para navegar pelo mundo (elas adoram ser detetives) e definir intenções claras de desenvolver o pensamento crítico através de conteúdos transversais. Em cima disso se constrói um currículo e a gestão fica subordinada a essas premissas. Se a administração privada quer “formar para o mercado” e para isso fragiliza as premissas, a administração privada não serve. Se os testes padronizados passam a determinar o que será estudado (para passar no teste), fragilizando as premissas, os testes não servem. Se não tivermos clareza sobre o que é essencial (e portanto deve ser preservado) e o que é circunstancial (e portanto pode mudar ou até deixar de existir), a educação não avança. E se a educação não avança, nos afundamos em notícias falsas, teorias falsas, mitos, terraplanismos, Weintraubs e mentira.