A deformação do amor erótico na contemporaneidade

Fromm– A verdade é que nós não queremos namorar. Ninguém aqui quer.

– Ok, mas você sempre está com alguém.

– Isso é verdade.

– Mas não é muito melhor progredir na relação com alguém? Na conversa, no sexo?

– Não necessariamente. E, também, pode até ser que a próxima mulher seja pior que a primeira, mas é a próxima. É a novidade.

   Assim esses colegas me falavam, entre pessoas indo e vindo na atmosfera boêmia de um sábado à noite. É certo que a conversa não se estendeu mais profundamente e que o discurso de uma pessoa não é uma verdade absoluta sobre ela, mas também um fruto específico e, geralmente, pouco consciente de sua história de vida e do contexto em que ela fala. Mas, tomando globalmente as falas, o lifestyle desses jovens de classe média, a incidência quase necessária do álcool em suas vidas, é impressionante como, décadas depois de Erich Fromm ter escrito sobre a vida na sociedade capitalista ocidental no século XX, a situação existencial e afetiva das pessoas na contemporaneidade pouco mudou.

   O modo como os indivíduos pensam e agem com relação ao amor erótico em nossos dias está diretamente relacionado, explica Fromm, às transformações econômicas após a primeira guerra mundial e a “mudanças que ocorreram no espírito do capitalismo, que passou da ênfase em poupar para a ênfase em gastar, da autofrustração como meio para o sucesso econômico para o consumo como base de um mercado cada vez mais amplo e como principal satisfação para o indivíduo ansioso e robotizado. Não adiar a satisfação de nenhum desejo torna-se a tendência fundamental na esfera tanto do sexo quanto de todo o consumo material” (p.115).

   Já no início do século XX, Freud afirmava o amor era apenas uma mudança fisiológica da função biológica da satisfação sexual. Por sua vez, Fromm rotula essa descrição como “a experiência do macho patriarcal do século XIX”. Mas Fromm também rejeita as experiências superficiais daqueles que vivem uma “personalidade alienada e comercial do século XX”, fazendo de seus namoros e casamentos  acordos do tipo “egoísmo a dois”, nos quais duas pessoas “partilham interesses comuns e enfrentam juntas um mundo hostil e alienado”.

   Qual o pano de fundo da visão de Erich Fromm sobre a origem da busca por união com o próximo que tem o ser humano? Responde ele:

“O essencial na existência do homem é o fato de ele ter emergido do reino animal, da adaptação instintiva, de ter transcendido a natureza(…). O homem só pode ir adiante desenvolvendo sua razão, encontrando uma nova harmonia, uma harmonia humana” (p.9).

   Esse estado de separação torna a existência humana isolada e ansiosa. O homem “enlouqueceria se não pudesse se libertar dessa prisão e estender a mão, unir-se de uma maneira ou de outra com os seres humanos, com o mundo exterior” (p.10). Ao invés de usar a força poderosa e trabalhosa do amor para a união, nossa sociedade vive a “conformidade de rebanhos” como uma estratégia descabida para a tentativa de religação social. Nosso trabalho é rotinizado e uniformizado, nosso lazer também é uniforme, ainda que de forma menos drástica. Batizados, casamentos, formaturas, baladas, as mesmas festas. Filmes escolhidos pelo comercial. Destinos turísticos da moda. Meu colega, já um tanto bêbado, dizia sobre a empresa descolada na qual trabalhava até duas da manhã: “Acho que o motorista do pet shop tem um trabalho melhor que o meu”.

   A vida regida pela lógica econômica capitalista não só gera processos de trabalho desumanizados e individualistas, também projeta nossas carências para a satisfação via consumo: “Toda nossa cultura baseia-se no apetite de comprar, na ideia de troca mutuamente favorável”(p.3), lembra Fromm. Nesse contexto, o que se costuma chamar de apaixonar-se trata-se, na verdade, de encontrar um bom negócio: uma pessoa que seja atraente, ou seja, tenha características valorizadas no mercado das personalidades (que também oscila conforme a moda), mas que também me queira, avaliando meus predicados “manifestos ou ocultos”. “Assim, duas pessoas se apaixonam quando sentem que encontraram o melhor objeto disponível no mercado, dadas as limitações de seus próprios valores de troca” (p.4).

   O problema desse tipo de união é que esses relacionamentos nada mais são que um breve desvio da união de conformidade com o grupo, nas palavras de Fromm, a “conformidade de rebanho”. A experiência de dois estranhos que rompem as barreiras entre si, se apaixonam, tornam-se íntimos sexualmente, é, como uma outra qualquer experiência orgiástica, pouco duradoura. “O ato sexual sem amor só vence a distância entre dois seres humanos momentaneamente” (p.15). Por outro lado, estar dentro dos padrões sociais não passa de uma pseudo-unidade.

   Apesar da inefetividade do ponto de vista da plenitude da realização humana, na atualidade a oscilação entre a conformidade social – a ostentação de uma vida fitness / hipster / glamurosa / de negócios / top, o número de seguidores no instagram etc – e as experiências orgiásticas – sexo, álcool, etc – parece ser o eterno looping das classes médias em todo o mundo. Nas palavras de Fromm:

“O homem moderno se transformou numa mercadoria; ele experimenta sua energia vital como um investimento do qual deveria tirar o máximo lucro, considerando sua posição e sua situação no mercado das personalidades. Ele está alienado de si, de seus semelhantes e da natureza. Seu objetivo principal é a troca lucrativa de suas habilidades, de seu conhecimento e de si mesmo, de seu “pacote de personalidade”, com outros que procuram igualmente uma troca equitativa e lucrativa. A vida não tem objetivo, salvo o de ir em frente, nenhum princípio, salvo o de uma troca equitativa, nenhuma satisfação, salvo consumir” (p.130)

   Não são poucas pessoas que abandonam relacionamentos estáveis por motivos que a elas mesmas não são tão claros, mas que uma análise profunda revelará que é pelo tédio de vidas superficiais e sem sentido. O problema é que o relacionamento estável superficial é trocado…Pelo looping da vida ostentação e das experiências orgiásticas. Dentro dessa mesma lógica, nos dias atuais, questões como a falta de desejo sexual e a perda da novidade são encaradas como fatos absolutos e motivos de separação, sem um questionamento que coloque o relacionamento como um valor a ser priorizado e a sexualidade como um fenômeno complexo. Assim os namoros e casamentos se tornam vidas consumidoras padrão, vividas sem reflexão, sem propósito, engajamento espiritual, político, ético… E, fora deles, encontros fugazes e sexo encarado como uma feira de novidades.

   A vida cujo único sentido é o consumo dos últimos lançamentos da moda evidencia a profunda ligação entre nossa vida de trabalho, afetiva, e até mesmo política: não é necessário destacar o alto grau de conformismo e desinteresse políticos das classes médias atualmente. Mesmo entre pessoas engajadas, a superficialidade afetiva é um fator dissipante da personalidade. Relembra Fromm:

“Segundo Freud, a satisfação plena e desinibida de todos os desejos instintuais criaria a saúde e a felicidade mental. Mas os fatos clínicos incontáveis demonstram que os homens – e as mulheres – que dedicam sua vida à satisfação sexual irrestrita não alcançam a felicidade e muitas vezes sofrem graves conflitos ou sintomas neuróticos” (FROMM, 2000, p.114)

   Em resumo, o modo de produzir e circular mercadorias na sociedade capitalista impregnou nossos relacionamentos em geral, e, especificamente, os eróticos, de superficialidade e alienação. Essa é a tese de Erich Fromm. Mas há outras perspectivas para esse problema: Um segundo fenômeno fácil de observar é que nossa péssima formação cultural também entrega à vida amorosa pessoas incapazes de refletir sobre a vida, sobre seus sentimentos, anseios, conflitos e propósitos.

   Uma terceira relação causal que vemos é a frieza nas relações humanas que essa sociedade de dominação produz desde a mais tenra idade das crianças. A também psicanalista Laura Gutman explica em seu livro O poder do discurso materno que a cultura capitalista e patriarcal de dominação tem conduzido mães e crianças de várias gerações a terem relações péssimas com seus corpos e sua afetividade. Repressão sexual das mulheres, violência obstétrica, licenças maternidade curtíssimas, abusos econômicos, sexuais, pais que se ameaçam mutuamente, crianças não tocadas, não abraçadas, deixadas chorando no berço, ameaçadas economicamente… Tudo isso desconecta mães, pais e filhos e gera pessoas com corpos enregelados. Assim podemos entender como muitos homens podem ser tão ávidos por sexo mas tão insensíveis aos toques afetivos suaves, tão desconectados da realidade humana do outro a ponto de pouco diferenciarem a prostituição de uma relação saudável.

   Toda essa reflexão pode ser sintetizada em uma frase: O  amor, como qualquer prática humana, não se desenvolve desconectado da sociedade e da cultura. Ele exige construções coletivas. Começar a enxergar que nossas práticas são mais desumanas do que gostaríamos de assumir para nós mesmos é um primeiro passo de progresso para que, mesmo dentro desse contexto econômico deformador de nossa humanidade, possamos buscar praticar o amor e assim viver de forma mais plena nossas potencialidades. Esse é o assunto do meu próximo texto.

 

Litza Amorim

 

FROMM, Erich. A arte de amar. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

5 respostas para ‘A deformação do amor erótico na contemporaneidade

    1. Olá Murilo, eu procurei responder à pergunta que você fez no texto que foi publicado na semana seguinte nesse mesmo blog. Segue o link:
      https://bloguniversidadelivrepampedia.com/2017/12/18/o-que-de-fato-e-o-amor-e-quais-sao-suas-implicacoes-morais-psicologicas-eroticas-e-politicas/

      Eu respondi a essa questão com base na abordagem psicanalítica do Fromm. Mas também recomendo a leitura dos livros do Viktor Frankl e da corrente psicológica logoterapia, nele inspirada. Você também pode fazer o curso sobre o livro A Arte de Amar do Erich Fromm que Universidade Livre Pampédia oferece, ler esse mesmo livro, ou enviar uma questão específica para nós! Espero ter ajudado.

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