Como pode ser explicado que um jornalista, pesquisador, autor de livros, com experiência internacional, possa exprimir o racismo num nível de elaboração de um senhor de engenho do século XVIII? Uma conversa entre homens que revela a estrutura frágil do mundo masculino. Nem a rara oportunidade educacional de ter sido aluno da conhecida experiência alternativa de educação do Ginásio Vocacional Oswaldo Aranha, em São Paulo, anos 70, foi capaz de filtrar a pulsão pela guerra.
A mesma conversa masculina se vê nas “brincadeiras saudáveis” de torcedores que batem-boca, humilham e rotulam seus adversários com apelidos degradantes – incluindo os homofóbicos. Como pode ser explicado tamanho fascínio pelo futebol como substituto da guerra, fenômeno expresso pelo pacato cidadão que, envolvido com seu grupo, atinge a nuca de outro torcedor com uma barra de ferro? Esse mesmo jogo também está presente nas redes sociais quando o assunto é política partidária.
Num mundo que ama o poder[1], tanto que a própria sexualidade é feita símbolo e instrumento de poder, seria uma certa forma de vingança afirmar que William Waack não sabe amar. Considerando sua necessidade premente de, ainda do alto de sua posição social, reafirmar a supremacia de seu grupo étnico, fazemos uma tentativa de interpretar essa condição psicológica a partir do conceito de caráter autoritário defendido pelo psicanalista Erich Fromm[2].
Amor – a resposta para o problema da existência humana. Esse é o primeiro subtítulo da obra “A arte de amar”, de Fromm. O ser humano, em sua evolução histórica, chega a um estado no qual se separa da natureza e vive uma condição cindida, emergida do reino animal e do ventre materno, afirma o autor. Esse estado de separação causa ansiedade, e por isso ao longo do tempo buscamos formas de aplacá-la. Ao longo da história, experiências orgiásticas, como rituais tribais, drogas, álcool e o próprio sexo, conformidade ao grupo na sociedade capitalista industrial, mas também uniões simbióticas de submissão e masoquismo ou dominação e sadismo foram tentativas usadas para escapar do estado de separação. Paras superarmos essa cisão, a união pelo amor é a saída mais complexa e trabalhosa, a única capaz de explorar plenamente as potencialidades da condição humana.
Amor, segundo Erich Fromm, é uma atitude, uma orientação de caráter direcionada ao mundo como um todo, embora se realize concretamente em condições específicas, como o amor fraterno, o amor materno, o amor erótico, etc. O amor maduro é a união que preserva a integridade da individualidade daquele que ama e daquele que é amado. O amor é composto de elementos básicos como o cuidado, respeito, responsabilidade e conhecimento: um conhecimento cada vez mais profundo do outro que chega a alcançar o núcleo do mistério do fenômeno humano.
Dentro desse quadro interpretativo, o amor que não é exercitado como uma faculdade, uma orientação de caráter universal, é apenas uma relação simbiótica – como a simbiose entre um corpo e seu parasita – e/ou um egoísmo ampliado. Se amo somente minha esposa ou os brancos, não os amo, fundo-os ao meu ego e apenas amplio meu narcisismo.
A união simbiótica é uma forma imatura de amor. “A união simbiótica tem seu modelo biológico na relação entre a grávida e o feto. São dois, mas são um. Vivem juntos (sym-biosis), necessitam um do outro (…). Na união simbiótica psíquica, os dois corpos são independentes, mas o mesmo tipo de apego existe psicologicamente” (FROMM, 2000, p.24). A forma passiva da união simbiótica é a submissão ou masoquismo. A forma ativa é a dominação ou sadismo. Para evitar confusões semânticas, o autor passa a chamar essa segunda forma de “caráter autoritário”.
Longe da beleza da Arte de Amar, para Erich Fromm, a essência do caráter autoritário (e o exemplo dele é a classe média alemã que aderiu à ideologia nazista), define-se “como a presença simultânea de impulsos sádicos e masoquistas. O sadismo foi explicado como visando ao poder absoluto sobre outra pessoa, mais ou menos mesclado com destrutividade; o masoquismo como visando à desintegração da própria pessoa absorvida por um poder esmagadoramente forte e participando da força e da glória dele” (FROMM, 1983, p.177). O autor cita um trecho de Hitler, exemplar do caráter sádico/masoquista por excelência, em Mein Kampf, falando sobre sua relação com as massas: “Como uma mulher…que preferirá submeter-se ao forte do que dominar o fracalhão, assim as massas amam o que manda mais do que o que suplica, e intimamente ficam muito mais satisfeitas com uma doutrina que não tolera rivais do que com outra que garante direitos liberais” (HITLER, 1940, p. 56, apud FROMM, 1983, p.177).
Sadismo e masoquismo são atitudes que parecem contraditórias mas tem uma origem comum: a situação emocional insustentável de ter de lidar com seu próprio ego e todas as suas “deficiências, conflitos, riscos, dúvidas e insuportável solidão” (p.125). Nesse sentido, o sádico também é escravo daquele que submete. “Em uma acepção psicológica, a ânsia de poder não se origina da força, mas da fraqueza. Ela é a expressão da incapacidade do eu individual para ficar sozinho e viver. É um esforço desesperado para conseguir força simulada quando se tem falta de força autêntica” (FROMM, 1983, p.133) “Hitler reagia principalmente de forma sádica em relação ao povo, mas de forma masoquista com relação ao destino, à história, ao “poder maior” da natureza” (FROMM, 2000,p.26)
Em conflito com as fraquezas de seu ego, para o caráter autoritário, “há, por assim dizer, dois sexos: os poderosos e os desprovidos de poder” (p.137), “da mesma forma pessoas ou instituições sem poder despertam seu desprezo”. “O simples fato de avistar uma pessoa impotente faz com que ele deseje agredir, dominar, humilhar esta. Enquanto um tipo diferente de caráter fica estarrecido ante a simples ideia de atacar uma pessoa indefesa, o caráter autoritário sente-se tanto mais animado quanto mais indefeso se tiver tornado seu objeto ” ( FROMM, 1983, p.138).
Assim, inferimos que muito provavelmente um homem racista será machista. Se ele foi ensinado que negros e mulheres (ou o torcedor do outro time) são fracos e inferiores, o caráter autoritário está fascinado por pertencer a esse grupo que o faz mais forte. Por outro lado, esse tipo psicológico apega-se emocionalmente à fatalidade, ao status quo, à posição social e à restrição da liberdade humana, racionalizados como “vontade do Senhor”, “lei natural”, “destino do homem” (p.139). Parece-nos que negros e mulheres causam ódio e medo aos autoritários, ainda quando subjugados. Se não tem poder, ou se, ao contrário, demonstram sua força interior, sua capacidade de realização, são encarados com horror.
Tais considerações explicariam, ao nosso ver, a reação patética de alguém remotamente ameaçado por mudanças culturais como o reconhecimento da igualdade “racial”. Também explicariam a insensibilidade dos homens que atuam no mundo, como jogadores de banco imobiliário. Na década de 70, quando Waack era estudante, os brancos e ricos fazendeiros e militares não fizeram caso de jogar agente laranja[3] na floresta amazônica para desmatar, plantar soja e cultivar gado, expulsando seringueiros e índios indefesos, matando padres, freiras, sindicalistas e deputados que se posicionassem ao lado dos extrativistas e da reforma agrária.
Se fosse apenas por William Waack, seria uma vingança boba afirmar que “o estudo dos problemas sexuais mais frequentes – a frigidez nas mulheres e formas mais ou menos severas de impotência psíquica no homem – revela que a causa deles não está na falta de conhecimento da técnica correta, mas nas inibições que tornam impossível amar. O medo ou o ódio do outro sexo estão na base das dificuldades que impedem que a pessoa se entregue completamente” (FROMM, 2000, p.110, grifo nosso).
Mas não é apenas sobre um homem branco e rico. É sobre tantos homens – brancos ou negros -, torcedores fanáticos, pais de família. Homens deformados nas relações econômicas e afetivas, oprimidos pelo mito da igualdade de oportunidades, rebaixados pela fraca autoestima, gerada por famílias fraturadas, escolarização precária, racismo estético… E que tentam desesperadamente proteger um ego frágil incorporando-o à grande aranha do “time do coração”, submetendo-se a regras questionáveis dos grupos masculinos, canalizando toda sua fúria para um jogo de futebol, repetindo ciclos de amor aos fortes e desprezo aos fracos. Tantos homens que precisam aprender a amar, afinal de contas, são também o sal da Terra.
NOTA da Universidade Livre Pampédia – para saber mais sobre A Arte de Amar de Erich Fromm, conheça nosso curso EAD sobre o livro.
FROMM, Erich. A arte de amar. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
FROMM, Erich. O medo à liberdade. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1983.
HITLER, Adolph. Mein Kampf, Nova York: Reynal & Hitchcok,1940.
[1] Referimo-nos negativamente ao poder como dominação. Erich Fromm apresenta, junto a esse primeiro sentido, um segundo conceito de poder, esse positivo: a criação, a potência, o poder de realizar-se.
[2] O caráter autoritário, ou sádico, explica Fromm, foi descoberto por psicólogos como um pano de fundo mais amplo de onde surgem perversões sádicas/masoquistas – algumas de cunho sexual. Quando falamos em caráter, não nos referimos a uma estrutura dada a priori, mas a um modelo psicológico construído historicamente a partir do qual a pessoa se relaciona com o mundo, que pode, evidentemente, ser modificado. Descobertos pelos psicólogos ao tratar de pessoas consideradas doentes, esses aspectos sádicos e masoquistas do caráter são, não obstante, muito encontrados em pessoas consideradas normais.
[3] Agente laranja é um veneno usado nas selvas vietnamitas pelos estadunidenses quando estavam perdendo a guerra. Na década de 70, os fazendeiros brasileiros tinham toda a liberdade de comprar esses produtos no país. Foi jogado agente laranja através de aviões nos seringueiros, nos seringuais da Basiléia, no Seringal do Carmo e no Seringal Poví. Muitas pessoas morreram, várias outras ficaram doentes, a caça e a pesca foram destruídas. Nos seringais Carmo e Poví foram encontrados 92 tambores de 200 litros de agente laranja, que já haviam derramado. Esse é o depoimento de Osmarino Amáncio, dirigente seringueiro do Acre, companheiro de Chico Mendes nas lutas pelos seringueiros e pela floresta amazônica na década de 70. Esse relato está no livro Pão, paz e terra. São Paulo, Editora Lorca, 2017.