O amor:
“Esse desejo de fusão interpessoal é o impulso mais poderoso que há no homem. É a paixão mais fundamental, é a força que mantém junta a espécie humana, o clã, a família, a sociedade. Não conseguir realizá-la significa loucura ou destruição – autodestruição ou destruição dos outros” (FROMM, 2000, p.23)
Erich Fromm, em sua obra A arte de amar, aponta que o amor é uma atividade, não uma paixão. Usando os conceitos de Spinoza de “ações” e “paixões”, o psicanalista explica que amar alguém não é um sentimento forte que nos toma, como ciúme, inveja, ambição ou qualquer tipo de cobiça. O amor é decisão, juízo, promessa, “uma ação, a prática de um poder humano, que só pode ser praticada em liberdade e nunca como resultado de uma compulsão” (p.28).
Isso não significa que elementos inconscientes, aparentemente não racionais, atrações e afinidades singulares entre duas pessoas não cumpram um papel relevante no surgimento de um tipo específico de amor ao qual aqui nos referimos: o amor erótico. Talvez a forma mais enganadora de amor que exista, aponta Fromm, o amor erótico é o anseio de fusão completa com outra pessoa: assim, por sua própria natureza é exclusivo, não universal. Mas o psicanalista aponta, por outro lado, que o principal problema do amor refere-se à faculdade, à arte de amar, não ao objeto amado. A vontade, a decisão cumprem um papel essencial nessa arte.
Em outras palavras, em nossa opinião, a paixão é um elemento que favorece o surgimento do amor erótico, mas, segundo Fromm, achar que o amor depende mais de encontrar um objeto amável do que da arte amar é como achar que um bom pintor não se faz treinando a pintura, mas, sim, ao achar a paisagem perfeita para ser pintada. Uma consequência prática desse pensamento é o entendimento de que, da mesma forma que é um erro considerar relacionamentos monogâmicos como arranjos indissolúveis, pensar, como é comum hoje, que qualquer desagrado ou incompatibilidade é motivo de separação é, na verdade, desconhecimento da arte de amar.
“O amor é uma atividade, não um afeto passivo; ele é um “manter-se ligado”, não uma simples “queda””. Amar é principalmente dar, não receber, explica Fromm. Para pessoas cujo caráter não se desenvolveu além do estado da orientação receptiva, o ato de dar é visto como empobrecimento, perda, pesado dever. Para a pessoa cuja orientação de caráter é produtiva, dar é expressão de potência, de enriquecimento, de criar amor e alegria no outro. “Eu me experimento como transbordante, pródigo, vivo, logo feliz”[1] (p.29).
A ética do amor implica cuidado, “a preocupação ativa com a vida e o crescimento do que amamos”. Requer responsabilidade: uma responsabilidade voluntária, significa ser capaz de corresponder às necessidades, expressas ou não, de outro ser humano. O amor acarreta respeito, ou seja: “quero que a pessoa amada cresça e se desenvolva para seu próprio bem, e por seus próprios meios, não com a finalidade de me servir”. Por fim, nada disso é possível, e, por conseguinte, o amor não é possível sem conhecimento:
“O conhecimento que é um aspecto do amor não deve permanecer na periferia, mas tem de penetrar até o núcleo. Só é possível quando posso transcender a preocupação comigo mesmo e ver o outro em seus próprios termos. Posso saber, por exemplo, que o outro está com raiva, mesmo que ele não tenha revelado abertamente; mas posso conhecê-lo mais profundamente do que isso; saberei então que está ansioso e preocupado, que se sente só, que se sente culpado. Saberei então que sua ira é a manifestação de algo mais profundo, e o verei como alguém ansioso e embaraçado, isto é, como uma pessoa que sofre, em vez de como uma pessoa irada” (FROMM, 2010, p.36)
A necessidade de união interpessoal do ser humano está relacionada com outro desejo que também distingue nossa espécie: o de conhecer “o segredo do homem”. “Enquanto a vida em seus aspectos meramente biológicos é um milagre e um segredo, o homem em seus aspectos humanos é um segredo impenetrável para si mesmo e para os outros”. Quanto mais conhecemos o outro, mais vemos como estamos longe do alvo, “mas não podemos parar de querer penetrar o segredo da alma humana, o núcleo mais profundo que é “ele””.
A união com outro ser humano é a forma excelente de conhecimento do outro, diz Fromm, melhor que um conhecer apenas por pensamento ou formas sádicas e destrutivas de analisar e dominar. A consequência desse fato para o amor erótico é que duas pessoas dispostas podem estar sempre rompendo barreiras entre si, estreitando o conhecimento uma do universo interior da outra, ao invés de distraírem-se por aparências mercadológicas que logo se tornam mais enfadonhas que um transe induzido por outras drogas quaisquer.
Não podemos deixar de lembrar que o desejo sexual não é uma expressão biológica neutra do ponto de vista moral e psicológico: ele “pode ser estimulado pela ansiedade da solidão, pelo desejo de conquistar ou ser conquistado, pela vaidade, pelo desejo de machucar e até destruir, assim como pode ser estimulado pelo amor (p.67)”. No contexto das superficiais relações eróticas da contemporaneidade, não nos espanta que estejam presentes na pornografia o sadomasoquismo, o estupro e a pedofilia, nem que alguns homens revelem abertamente seus desejos sádicos. Nem nos surpreende que tantas mulheres estejam falando publicamente sobre o desgaste que lhes causam os homens afetivamente superficiais e irresponsáveis. O formalismo dos contratos sexuais não está imune aos abismos da alma humana, com seus aspectos mais nobres, seus anseios, mas também feridas e tormentos.
O que vemos na sociedade contemporânea é que o direito a uma vida sexual autônoma – que é uma conquista que não deve retroceder – não resolve totalmente o problema humano. Tendo a dimensão afetiva das pessoas sucumbido à lógica mercadológica, todos estão cada vez mais ansiosos e o amor, como experiência profunda, é cada vez mais raro. Não nos arriscamos a dizer que um dia o amor já tenha sido mais presente na história das grandes civilizações, mas de fato ele necessariamente é um fenômeno marginal na sociedade capitalista.
E aqui chegamos a um outro tópico: a relação entre o amor e a política. Para Fromm, o amor é um traço de caráter, portanto, não pode ser aplicado só aos amigos e família: necessita incluir os estranhos, o trabalho, os negócios, a profissão. “Não há “divisão do trabalho” entre o amor a si mesmo e o amor ao estranho”. O grande problema da sociedade capitalista, explica o autor, é que nela a norma judaico-cristã “amar ao próximo como a si mesmo”, que originalmente significaria sentir-se unido e responsável pelo outro, é interpretada como mero princípio de “equidade”: “Eu lhe dou quanto você me dá”, eu não cometo trapaças e fraudes na troca de mercadorias (inclusive as sexuais), respeito seus direitos legais (nesse ponto até Fromm está sendo demasiado generoso com a realidade da sociedade capitalista), mas não me sinto unido e responsável por você: me sinto distante e separado.
O cuidado, a responsabilidade, o respeito e o conhecimento, como expressões da arte de amar, estão profundamente ausentes das relações sociais da presente sociedade: Mães mal alfabetizadas amariam melhor se pudessem estudar e compreender o desenvolvimento psicomotor de seus filhos; pais que recebem péssimos salários mal conseguem expressar o cuidado com as crianças se não podem viver em um ambiente salubre, com uma casa livre de pestes e uma vizinhança sem tiroteio quinzenal; professoras com quarenta alunos e três turmas não têm condições favoráveis para perceber individualmente se suas crianças sofreram abuso sexual ou estão depressivas. Todas essas pessoas estão em ambientes desprovidos de amor, e, assim, com maiores obstáculos para exercer sua própria arte de amar.
Quando a sociedade escolhe pelos próximos vinte anos priorizar o pagamento de juros de títulos de dívida pública a fortalecer o sistema de proteção social do país – o que aconteceu ano passado com a aprovação da PEC 55 – alunos ficam sem reforço escolar, pessoas ficam sem consultas médicas: essa é uma expressão coletiva da falta de cuidado, da falta de amor.
Não há dúvidas de que, num sentido abstrato, o princípio subjacente à sociedade capitalista – alguns chamam de livre iniciativa, outros de busca pela vantagem pessoal, egoísmo, individualismo ou indiferença – e o princípio do amor são incompatíveis. Mas, explica Fromm, a sociedade capitalista moderna, encarada de forma concreta, é um fenômeno complexo e em constante mutação, e há margens para que as pessoas – dentro de certas condições – tentem praticar o amor sem deixar de funcionar economicamente. Um vendedor de uma mercadoria inútil não pode funcionar no mercado se não mentir, mas um químico ou outro operário especializado, pode. Esse sistema complexo permite uma dose de “não-conformismo e de latitude pessoal” bastante favoráveis ao amor.
Por um lado, Fromm alerta que devemos “chegar à conclusão de que são necessárias mudanças radicais em nossa estrutura social, para o amor se tornar um fenômeno social, e não um fenômeno altamente individualista e marginal”. Por outro lado, a própria experiência de amor individual erótico é uma união falsa, se não se coaduna ao amor universal, pois “o amor erótico é exclusivo, mas ele ama na outra pessoa toda a humanidade, tudo o que vive” (p.69).
A disciplina, a concentração, a atenção plena, a paciência são outras virtudes a serem cultivadas a fim de atingir a prática da arte de amar, que deve ser a suma preocupação de quem procura o amor como a resposta para o problema da existência humana. O abandono das relações com o próximo como mercadorias pode parecer um caminho árduo, mas ele é o único no qual podemos encontrar vivências menos ansiosas e insaciáveis, e, principalmente, inserirmo-nos na vida e no mundo de forma a expressar o amor pela humanidade, não apenas compensações às nossas dificuldades existenciais. Assim encerramos com Fromm:
“A sociedade deve ser organizada de maneira que a natureza social e amante do homem não seja separada de sua existência social, mas se torne uma só coisa com ela. Se, como tentei mostrar, é verdade que o amor é a única maneira sadia e satisfatória de responder ao problema da existência humana, logo toda sociedade que exclui, relativamente, o desenvolvimento do amor acaba a longo prazo perecendo de sua contradição com as necessidades básicas da natureza humana. De fato, falar de amor não é “pregar”, pelo simples motivo de que significa falar da necessidade mais profunda e real de todo ser humano. O fato de essa necessidade ter sido obscurecida não significa que não exista. Analisar a natureza do amor é descobrir sua ausência geral hoje e criticar as condições sociais responsáveis por essa ausência. Ter fé na possibilidade do amor, como fenômeno social e não apenas excepcional e individual, é uma fé racional baseada na compreensão da natureza verdadeira do homem” (FROMM, 2000, p.165)
Litza Amorim
[1] Um comentário interessante do autor sobre esse assunto: “É bem sabido que os pobres são mais propensos a dar que os ricos. No entanto, a pobreza além de certo ponto pode tornar impossível dar, o que é por demais degradante, não apenas pelo sofrimento que causa diretamente mas porque priva o pobre do prazer de dar” (p.30). Ou seja, a pobreza priva a pessoa da alegria produzida por sua própria generosidade.
NOTA da Universidade Livre Pampédia – para saber mais sobre A Arte de Amar de Erich Fromm, conheça nosso curso EAD sobre o livro.
Nossa fiquei até sem fôlego. Um artigo no qual não pode ficar com uma única leitura.
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Obrigada por prestigiar, amiga!
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Esse autor foi um dos principais pensadores que descobri nos últimos anos!
Antes tarde do que nunca…
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Só o amor sabe o que é verdade. https://paladinocursos.wordpress.com/2018/03/21/mulheres-desesperadas-para-casar-que-sao-enganadas/
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Na vida,nao existe antecipacao nem adiamento,somente o tempo propicio de cada um,
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Esta tarde, há poucos centímetros… estivemos assim? Ou foi um engano?
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