Educação pública e bancos – alguma coisa a ver?

 

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Nesse mês de setembro, houve um seminário em SP, promovido pelo Instituto Unibanco, com o seguinte tema: Caminhos para a qualidade da Educação Pública, impactos e evidências. Num mês em que estamos atordoados pela ameaça concreta de uma medida provisória, que pretende mudar o Ensino Médio radicalmente e de forma autoritária, sem ouvir a sociedade, os educadores e os alunos, afastando a Filosofia, a Sociologia, a Arte e a Educação Física, é interessante observar o que um seminário internacional, promovido por um banco, está discutindo. E ver se pode haver qualquer ligação entre as ideias propostas nesse evento e essa medida provisória anunciada pelo governo.

E há… embora não tão explícita à primeira vista. Aliás, o atual ministro da Educação lá estava palestrando no Seminário.

Já o primeiro problema está no fato de bancos estarem tão interessados na Educação (e estão há muito tempo – o Banco Mundial tem comandado muitas intervenções na Educação brasileira, há várias décadas). Bancos, como se sabe, só tem interesse numa coisa: o próprio lucro. As migalhas que serão aplicadas em projetos sociais e educacionais, obviamente estão condicionadas à ideologia mercadológica que rege cada músculo dessas instituições, que atualmente comandam o planeta, não para o bem do planeta, mas para o bem de alguns poucos acionistas.

Estamos nos embrenhando no Brasil pelo caminho cada vez mais impositivo de uma educação de mercado. (Nessa linha, tudo o que se faz e propõe é para adequar o ser humano ao mercado e não para desenvolver suas potencialidades, com vistas à sua realização enquanto ser humano.) Não que essa já não tenha sido a tônica há muitas décadas. Mas agora, estamos avançando a passos largos para um modelo de educação que pretende resultados quantitativos, com predominância de matérias que são consideradas “mais importantes” como línguas e matemática, em detrimento de “humanidades”. Filosofia, história, sociologia, artes – que são considerados campos de doutrinação, matérias perigosas, desnecessárias, inúteis, apetrechos descartáveis. Nisso concordam neoliberais, representantes da escola sem partido, padres extremistas, pastores evangélicos (cujos dogmas podem ser confrontados por reflexões filosóficas, por dados históricos etc.) e por espíritas que não compreenderam o espiritismo.

E mais, isso fica implícito também numa proposta como essa discutida no seminário acima.

Trata-se de querer basear as intervenções na educação pública em evidências. O que exatamente significa isso? Temos aí duas concepções importantes: primeira, a ideia de que as políticas públicas são intervenções de cima para baixo. Como aliás está se pretendendo fazer com essa medida provisória do governo. O tempo todo no seminário, os temas giram em torno dos gestores da educação e das políticas educacionais. Não se pensa que docentes e discentes possam e tenham que participar da proposição dessas políticas e da gestão da escola. Ou seja, temos aí uma concepção autoritária de educação.

A segunda é que os resultados da educação (em todos os níveis e isto está sendo proposto desde a pré-escola, o que é um desastre, porque acaba com uma fase importantíssima da primeira infância, que é o livre brincar) podem ser completamente mensuráveis, com estatísticas numéricas. Então, isso significa uma educação baseada em resultados: desde a provinha quando se termina a pré-escola até o número de artigos que um professor universitário deve produzir para permanecer no seu cargo ou ser promovido.

Produtividade mensurável é o resultado de uma educação mecanicista, mnemônica, baseada apenas em conteúdos, fechada em respostas prontas (já que essas respostas terão de ser medidas) – ou seja é um processo desumanizado. Isso pode ser no máximo, instrução, adestramento, aquisição de informações. Mas jamais de fato educação.

Já o prof. Rivail, discípulo de Pestalozzi, que depois se tornaria Kardec, dizia o seguinte:

“…não se trata mais de ensinar mecanicamente o que quase sempre se aprendeu da mesma forma; tudo é intelectual, tudo é moral, tudo repousa sobre a consciência profunda das operações e do desenvolvimento do espírito; desenvolvimento cujo progresso se deve seguir, e que não é sempre muito fácil de reconhecer para alguém sem muito hábito de fazer este tipo de observação. Frequentemente um médico vê no seu doente uma melhora que escapa aos olhos comuns; assim o professor esclarecido e experimentado reconhece no seu aluno os progressos intelectuais, ainda que eles não se manifestem para fora de uma maneira muito aparente. Ele os segue passo a passo, constata-os; tudo lhe diz deles, ele os vê na natureza das respostas da criança, em suas perguntas, em suas reflexões, em seus julgamentos. Mas aquilo que deveria ser para o professor consciencioso um motivo de satisfação é muitas vezes objeto de dor e desencorajamento. Estes resultados morais, os mais importantes sem dúvida, que ele não terá obtido senão às custas de perseverança e habilidade, lhe serão frequentemente contados como nada. A criança, cujo julgamento terá sido desenvolvido e ajustado, cujo círculo de ideias terá se estendido além da esfera de sua idade, será muitas vezes eclipsada por aquela que pode recitar sem erro uma fábula ou sua gramática, sem compreender uma só palavra. Prefere-se o material, porque pode-se vê-lo, porque ele cai sob os nossos sentidos; não se despreza o outro resultado, mas ele é menos apreciado, porque nos atinge menos sensivelmente. Assim, muitos professores se apegam exclusivamente a esses resultados materiais, porque são eles que são levados em conta quase exclusivamente.” (Kardec educador, Editora Comenius)

Em outro texto do mesmo livro, Rivail se refere à educação como uma arte, embora em pleno século XIX, ele pleiteasse também seu estatuto científico. Mas em toda a parte, assim como seu mestre Pestalozzi e igualmente Rousseau, mestre de seu mestre, existe a ideia de que a educação é algo sutil, integral e integrado, que exige uma observação atenta, pessoal, um empenho afetivo e efetivo do educador e de que o resultado… escapa a uma mensuração material. Porque se trata de desenvolver habilidades, convidar a mente para a reflexão autônoma ou como dizia Platão, mais poeticamente: educar é abrir os olhos da alma.

Isso se faz em propostas de ensino em que se permita a liberdade e onde a individualidade seja respeitada e não em propostas autoritárias e massificadas, com metas a serem alcançadas em bloco. Na verdade, saber português ou matemática, história ou biologia é um excelente e necessário subproduto da educação – não é a meta central. Educar é um processo, começa na relação afetiva entre educador e educando, produz amadurecimento, leva à autonomia do aprender e do pensar.

Quando se fala, portanto, em fazer intervenções educacionais em escolas e países, baseando-se em evidências, como serão produzidas essas evidências? Através de resultados numéricos, de avaliações padronizadas, em propostas vindas de cima, e não construídas coletivamente, sob a liderança de pessoas que pensam a educação de forma humana e democrática. A educação então sim se torna um instrumento de manipulação das massas e ninguém me venha dizer que bancos sejam atores neutros e desinteressados nessa intervenção…

Quem procura financiamentos em programas empresariais, em editais de bancos etc. sabe que as condições são sempre bastante limitantes, amarradas. Não há dinheiro para experiências livres, não há investimento em filosofia, em artes, em espiritualidade. Há financiamentos para projetos que justamente possam produzir evidências, em forma de resultados numéricos, de proposições bem estritas, mas não melhorias profundas, mudanças reais de mentalidade, progresso humano legítimo.

Depois de todas as reflexões na área da Filosofia das Ciências do século XX, sabe-se hoje, que mesmo a ciência mais baseada em evidências, pode estar comprometida com ideologias, com seus financiadores, com esse ou aquele viés, que lhe arranca aquela pureza de vestal, que os homens do século XIX achavam que a ciência sempre assumiria. Não é só a religião dogmática e a filosofia unilateral, que abandonam o plural e que podem ser doutrinantes, a ciência também pode estar a serviço de interesses escusos. Então, cuidado! Intervenções, baseadas em evidências, financiadas por bancos e propostas por governos sem respaldo democrático – podem ser bastante comprometedoras para uma ideia de Educação, que inclua a liberdade, o amor e o desenvolvimento integral do ser humano.

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