Vivemos numa época de violentas trocas de palavreado (às vezes com baixarias) nas redes sociais; num momento histórico em que assomam fanatismos de toda sorte, religiosos, políticos, alimentares, filosóficos… como se isso não fosse uma contradição, pois pressupõe-se que as religiões acima de tudo recomendam o amor ao próximo (e isso aparece em todas elas de uma forma ou de outra) e a política deveria ser a arte da convivência da diversidade, e a alimentação é de foro íntimo de cada um, e a filosofia deveria ser algo baseado na razão argumentativa e não no dogmatismo fanático…
Mas, como diz Clóvis de Barros Filho no vídeo abaixo, a emoção do ódio toma conta das pessoas e acaba se manifestando de forma virulenta ou pelo menos sub-repticiamente autoritária, quando há diferença de ideias.
Há que se examinar aqui uma questão filosófica importante na discussão sobre tolerância, diálogo com o outro, comunicação não-violenta e outras proposições, que evidentemente adotamos – tanto individualmente, quanto institucionalmente na Universidade Livre Pampédia.
Como seres humanos, que nos pretendemos éticos, sobretudo os que pensam que há ou deve haver valores universais – temos princípios inegociáveis. Qualquer um – mesmo o mais relativista, tem algum princípio inegociável. Caso contrário, estaremos diante de um psicopata social, ou seja, alguém doente psiquicamente, que não é capaz de sentir empatia com o próximo e, portanto, incapaz de respeitar qualquer mandamento ético em sociedade.
A questão que se põe é que muitas vezes queremos impor princípios que nos parecem absolutos a pessoas que não têm os mesmos princípios que nós. Ou ainda, não sabemos hierarquizar os princípios, escolhendo aqueles que realmente devem ser universais e sendo mais flexíveis com aqueles que são só nossos, do nosso universo de crença pessoal, de nossa opção de vida, relativos à nossa visão de mundo – que obviamente consideramos a melhor e mais verdadeira, mas que temos de saber que não é a única, e nem pode se impor a ninguém.
Mas como localizar dentro e fora de nós, na convivência social, na prática do diálogo com o outro, aquilo que realmente não pode ser relativizado de jeito nenhum e até que ponto a não-relativização implica a tolerância com o outro que está infringindo esse princípio? Deixe-me ser mais clara: por exemplo, devemos tolerar e aceitar que outros tenham visões diferentes da nossa a respeito da sexualidade, mas podemos aceitar a prática e a divulgação de pedofilia, incentivo ao estupro, violência contra a mulher, violência contra homossexuais ou coisa que o valha? Aí se mostra um limite para a tolerância e para a relativização das questões morais. Por quê? Porque há um princípio maior que se impõe: que é o respeito à dignidade, à integridade de cada ser humano, seja homem, mulher, criança, velho, homo ou hetero. Ou seja, aí estamos tateando um princípio universal que deveria ser inegociável: o respeito à dignidade e à integridade física e moral do ser humano. Mas, atenção! Para fazer valer esse princípio, não podemos por nossa vez, desrespeitá-lo na pessoa que o está praticando. Por exemplo, impedir que um pedófilo abuse de uma criança, é um dever moral, mas, por exemplo, torturá-lo será nos colocarmos em posição semelhante à dele.
Um exemplo mais light: há inúmeras discussões hoje sobre vegetarianismo, veganismo etc. Podemos individualmente adotar a forma de alimentação que mais nos convém ou que estejamos convencidos ser a melhor, por motivos apresentados pela ciência (e garanto que no campo da alimentação há posições bem diversas), por motivos humanitários, religiosos… mas não podemos impor essa visão a ninguém e nem nos colocarmos numa posição de superioridade diante de quem não partilha de nosso modo de ser.
A intolerância, aliás, se manifesta muitas vezes, como um gesto de prepotência para com o outro, uma desqualificação completa do que o outro é ou pensa. Exemplos: só minha religião salva, as outras todas mandam para o inferno; só o meu partido político ou minha ideologia está com a verdade absoluta, todos os outros são pilantras, (comunistas ou reacionários)… Só a minha visão de mundo é racional, é científica – o resto (literalmente) é ignorante, ralé… Quando dicotomizamos, radicalizamos, dogmatizamos, demonizamos o outro, qualquer diálogo é impossível. Não sobra espaço para a troca de ideias, não há possibilidade de aprendizagem com o outro.
Sempre me lembro a respeito de algumas lições importantes que recebi na vida de pessoas que conviveram comigo na adolescência e já adultas e que, apesar de católicas e eu espírita, sempre se dispuseram ao diálogo amistoso e respeitoso. Lembro-me fortemente de uma freira espanhola, Madre Marina Gómez, minha professora de religião, quando eu tinha 13 anos de idade, no Colégio Maria Imaculada, em SP. Ela me deixou expor na classe o que era o espiritismo e, depois, quando fui lhe dar um livro de Herculano Pires, perguntei com medo de ser impositiva: “a senhora aceitaria um livro espírita, para conhecer melhor o que pensamos?” Ela abriu um sorriso bonito, acolhedor, que não deixava margem a qualquer discriminação: “Minha mãe sempre me ensinou que saber não ocupa espaço. Vou ler com muito carinho”.
Mas existem pessoas “demoníacas”, com as quais não é possível dialogar? Existe o mal absoluto, com o qual não podemos negociar?
Aí depende de nossa visão de mundo – se temos uma visão que mantenha uma confiança de fundo no ser humano, ainda quando ele se apresente como representante de um comportamento incompatível com qualquer princípio ético. O problema é que justamente quem fecha o diálogo e parte para a agressão pode ser aquele que não considera o outro como um ser humano pleno, digno, mas como obstrução ao caminho de dominação, poder ou “salvação” que deseja impor ao resto da humanidade!
Aí só podemos lembrar de Gandhi, para mim, o maior exemplo de cristão, não sendo cristão de origem, mas um dos que melhor compreenderam o que Jesus pretendia dizer, com sua ideia de amor e perdão irrestrito. Os ingleses, para os indianos, representavam a opressão, a exploração, a matança (por exemplo, durante a campanha de Gandhi, houve o massacre de Amritsar, em 1919, em que ingleses, encurralaram, executaram e feriram centenas de indianos civis, indefesos, que estavam participando de uma manifestação pacífica). Ora, Gandhi chorou, lamentou, liderou sua campanha de desobediência civil, e de independência, mas não se rendeu ao ódio. Mesmo diante do indesculpável, do injustificável, da tragédia, não agiu como o adversário. Ao contrário, sempre contou com a hipótese de tocar o outro, para despertá-lo para a consciência moral, para a compaixão.
Ou seja, mesmo no caso limite, em que o outro excede os limites, não podemos nós nos exceder, quando acreditamos na força do bem, do amor e de princípios imanentes em todos os seres humanos. Assim, quem dessa forma vive, pratica o bem em que acredita, expõe os princípios e ideias pelos quais milita, sem ofender ninguém, sem desqualificar, sem demonizar, tendo confiança e esperança de que um dia (mais fácil para quem acredita na eternidade) todos os que abusam da liberdade para ferir o próximo, serão despertados para a empatia, para a compaixão, para a fraternidade e para paz.
Isso há de significar que temos de silenciar, aceitar, nos curvarmos diante das injustiças, dos abusos, das violências? Não. Tudo o que estiver ao nosso alcance, devemos fazer, para impedir que violências e injustiças sejam cometidas, mas sem nos tornarmos também violentos e injustos. Porque os fins não justificam os meios. Como dizia Gandhi, os meios já fazem parte dos fins!
Vídeo sobre tolerância de Clóvis de Barros Filhos:
Dora Incontri
Dora, como diz a música do Gil, sei tenho que lamber o chão dos palácios, dos castelos suntuosos do meu sonho. Mas tá difííícil. Se há algo de útil que eu possa tirar desse ambiente tão tenso, polarizado que estamos vivendo hoje, com pessoas urrando palavras de ordem, é ver o quanto estou longe da postura de Gandhi. As poucas vezes em que entrei em debates acalorados foram péssimas. Como admiro os debates de Kardec, sua calma, suas palavras incisivas mas educadas, diante dos ataques mais descabidos. Sabe que mais até que Herculano Pires? Eu me achava bem tolerante com as opiniões diferentes da minha. Impressionante como isso caiu. Enfim, estou fazendo justamente o caminho não recomendado, saindo à francesa de algumas pessoas. Como um recuo estratégico para evitar jogá-las de vez no meu lixo moral, que fica lá no fundo do meu poço de orgulho. Enquanto isso venho tentando entender o que tenho sido. Tolerante? Fingido? Hipócrita? Ficado só na zona de conforto da concordância? Tenho só cumprido normas de convívio social? Até agora, a respeito de tolerância, só sei que nada sei. Bj.
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Alexandre Pereira! Ninguém disse que isso é fácil! Hoje mesmo bloqueei algumas pessoas que me agrediram grosseiramente no Face. Acontece que a maioria não sabe ainda debater ideias e se rende ao ódio. Não retribuir com ódio e violência é já um grande ganho, mas também não acho que devamos nos deixar agredir. Se algo nos fere por ser demasiado agressivo, saiamos mesmo à francesa!
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Com esses que ofendem sim, o jeito é deixar de lado. O que tem me incomodado e me feito refletir é a intolerância que ficou mais evidente em mim ao me irritar quando os outros não conseguem enxergar o que pra mim é tão claro e certo. Acho que o que está causando esse conflito é ver pessoas que eu considero, mostrando ideias que acho tão reacionárias. Vi o quanto tenho que aprender a não jogar a água fora com o bebê junto. Gostaria muito de saber debater com serenidade, sem aquele sangue subindo e vou caminhar pra isso. Mas no momento só o que consigo dar de mim é o silêncio. Bj.
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É natural, Alexandre! Sinto o mesmo! Mas estamos a caminho!
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