A primeira coisa que podemos dizer, em resposta à pergunta formulada, é que nosso país está em colapso por falta de arte, isto é, por falta de sensibilidade. Ao contrário dos artistas, que se tensionam, se recriam, se educam, que conhecem o poder da palavra e a usam com tanto cuidado, que sentem o corpo de modo visceral e vivem a bela dialética entre corpo e espírito, as classes que dirigem o país estão embotadas na imaginação estreita, colocam carros na sala de estar e precisam contratar a Ivete Sangalo para fazer um show para comprovar que (eles) amam suas mulheres.
Os artistas brasileiros amam a arte, sacrificam-se por ela, enquanto nossas elites políticas e econômicas não defendem – e até mesmo desprezam – um projeto democrático e igualitário de país. Pelo aguçamento da sensibilidade, nossos artistas abraçam a empatia e a perspectiva dos excluídos, dos explorados e subalternos dos direitos, da economia, da história. Resgatam, por exemplo, a história das grandes mulheres apagadas pela memória brasileira, como fizeram lindamente na peça Matriarcado de Pindorama, que não está mais em cartaz.
Também movidos pela profunda identificação humana com o outro, a Cia. Livre e a Cia Oito Nova Dança trazem a perspectiva das lutas dos povos ameríndios no Brasil contemporâneo na peça Os Um E Os Outros. O retrato é feito com tão profundos respeito e reverência que sentimos, no fim das contas, que o outro já não é tão outro assim. Que o outro é um tanto eu, um tanto nós. E isso é especialmente verdade em nosso país, no qual muitos de nós possuem mulheres indígenas em sua ancestralidade, raízes manchadas pelo estupro e a subjugação.
Em Os Um e os Outros sentimos novamente, pensamos novamente, vivemos novamente essa mesma vida histórica do Brasil no século XXI, mas como arte, com o olhar de estranhamento, de contemplação necessária para captar a verdade das coisas. Como aprendi com a dramaturga Viviane Dias, o teatro surge dos rituais religiosos de tempos imemoriais, e, passando por Os Um E Os Outros, como passei pelo Matriarcado de Pindorama, senti a potência dos rituais para reafirmar as verdades mais profundas da existência que movem todos aqueles que lutam pela transformação da cultura necrófila e individualista que está destruindo o planeta Terra e impedindo a vida de seus múltiplos habitantes.
Explicando Os Um e os Outros, conta a diretora Cibele Forjaz: “Percorrendo a estrutura da peça de Bertolt Brecht, propusemos uma justaposição da luta entre “Horácios” e “Curiáceos” e as múltiplas formas de resistência dos povos indígenas no Brasil contemporâneo: tanto em camada documental, através de depoimentos e registros realizados em uma viagem à região do Rio Xingu, quanto pela transposição dessas estratégias para o corpo dos intérpretes”.
Também nós, espectadores, sentimos no corpo: A humanidade dos artistas que falam sobre si mesmos e sobre sua condição num país que os considera indesejáveis como uma doença, a força da ironia dizendo sobre a raiva que a injustiça produz em nós, os cânticos que, como deuses, enaltecem e alimentam o trabalho árduo de buscar caminhos de existir e resistir nesse tempo histórico de homogeneização e exclusão, e, para mim, o mais comovente de tudo, a palavra e o coro do povo Guarani M’Bya, representando a verdade dos povos indígenas, do outro, da beleza da alteridade, da interdependência e da coletividade. Nosso país está colapsando justamente por ignorar esses valores.
Conheça o espetáculo:
Os Um E Os Outros
COM CIA. LIVRE E CIA. OITO NOVA DANÇA
De 5 a 22 de Setembro de 2019
De quinta a sábado, 21h
Domingos e Feriados, 18h
SESC POMPEIA – São Paulo/SP
Ficha Técnica:
Livre recriação de “Os Horácios e Curiácios”, de Bertolt Brecht
Cocriação da Cia. Livre e da Cia. Oito Nova Dança
Jogadorxs: Adriano Salhab, Cibele Forjaz, Fernanda Haucke, Fredy Allan, Gisele Calazans, Lu Favoreto, Lucia Romano, Marcos Damigo, Roberto Alencar e Vanessa Medeiros
Contraregra em cena: Jack Santos
Músicos em cena: Gabriel Máximo e Ivan Garro
Composições de trilha original, direção musical e arranjos: Adriano Salhab e Guilherme Calzavara
Desenho de som e sonoplastia: Ivan Garro
Direção de arte: Cla Mor, Marília de Oliveira Cavalheiro e Valentina Soares
Arquitetura cênica e objetos: Marília de Oliveira Cavalheiro
Figurino e objetos: Valentina Soares
Vídeo: Annick Matalon, Cla Mor, Fábio Riff, Lucas Brandão e Mariana Caldas
Operação de vídeo: Cla Mor
Câmera em cena: Annick Matalon
Vídeo mapping: Fábio Riff e Mariana Caldas | Vapor 324
Luz: Cibele Forjaz e Matheus Brant
Operação de luz: Matheus Brant e Nara Zocher
Identidade visual e projeto gráfico: Julia Valiengo
Assistência de direção: Gabriel Máximo e Jack Santos
Preparação e direção vocal: Lucia Gayotto
Preparação corporal e direção de movimento: Lu Favoreto
Assessoria de imprensa: Márcia Marques | Canal Aberto
Produção: Iza Marie Miceli e Bia Fonseca | Nós 2 Produtoras Associadas
Direção geral e encenação: Cibele Forjaz
Coro convidado do povo Guarani M’Bya [em revezamento]: Jerá Poty Miri, Jerá Guarani, Tatarndy Germano, Karai Negão, Karai Tiago, Poty Priscila e Karai Tataendy Ricardo