No documentário sobre Daryl Davis – Accidental Courtesy: Race & America (Netflix) – acompanhamos a trajetória desse músico negro que dedicou sua vida a fazer amizade como membros da Ku Klux Klan. Ele conta que foi numa conversa acidental, numa mesa de bar, que ele começou sua jornada para entender como alguém pode odiar o outro se essas pessoas nem se conhecem.
A Ku Klux Klan é um movimento protestante (cristão) conservador que cresceu em diferentes momentos da história norte americana. Depois da Guerra de Secessão que pôs fim à escravidão (1865), o movimento surgiu para defender a supremacia da raça branca, promovendo perseguições, linchamentos e enforcamentos de ex-escravos. Em 1915, o movimento retorna defendendo um nacionalismo branco, atacando judeus, católicos e negros. Depois da Segunda Guerra Mundial, a KKK ganha força com uma agenda anticomunista, contra a miscigenação, perseguindo homossexuais. Hoje o discurso xenofóbico justificado pelas ações terroristas islâmicas reascendeu o movimento que vê o atual presidente como seu aliado.
Para Daryl, que viveu seus primeiros 10 anos fora dos Estados Unidos, convivendo com pessoas de diferentes etnias e religiões, a volta ao seu país natal foi um choque de realidade. Ele era o único menino negro de sua classe e numa das primeiras atividades da turma fora da escola, ele foi apedrejado por cidadãos brancos. Em 1968, seus pais explicaram para ele o que era o racismo. Neste mesmo ano, Martin Luther King Jr. foi assassinado.
A forma como Daryl decidiu lidar com esse assunto é incomum. Ele é duramente criticado pelos integrantes de movimentos negros por ser condescendente com pessoas que fazem do discurso de ódio seu sentido existencial. Do outro lado, ele é visto com desconfiança por muitos membros do Klan que não querem se aproximar de alguém “inferior”. Seguindo os passos daquele que passou a ser seu modelo – Dr. King – ele aposta no diálogo para construir pontes. Em suas palavras:
“A coisa mais importante que entendi é que quando você está aprendendo ativamente sobre outra pessoa, você está passivamente ensinando-a sobre você. Então, se você tem um adversário com um ponto de vista oposto, dê a essa pessoa uma plataforma. Permita que ele exiba esse ponto de vista, independentemente de quão extremo possa ser. E acredite em mim, eu ouvi coisas tão extremas nessas marchas que você ficaria dilacerado.”
Em mais de 20 anos de conversas com membros do Klan, Daryl já convenceu mais de duas dúzias de pessoas a deixarem o movimento. Num dos momentos mais interessantes do documentário somos apresentados a uma família (pai, mãe e duas filhas), todos membros do Klan, que Daryl conheceu num programa de TV. O pai foi preso e Daryl se ofereceu para levar a mãe e as filhas para visitá-lo no presídio que ficava longe. Nenhum membro do Klan havia se oferecido para fazer isso pela família, e Daryl fez por acreditar que mesmo que eles pregassem o ódio, as meninas precisavam do pai.
Outro caso profundamente humano é do ex-membro da KKK, Scott Shepherd, que por mais de 20 anos defendeu a ideologia do ódio. Seu pai que era alcoolista e sofria de estresse pós-traumático por ter lutado na Segunda Guerra, abusava fisicamente do filho. Aos 16 anos, ele entrou para o Klan buscando pertencimento e proteção, e passou a se sentir importante. Com o tempo ele se afastou de sua família, vivendo apenas para o Klan, até que ele foi preso por dirigir embriagado e teve que passar pela reabilitação (que inclui programas como os 12 passos do Alcoólicos Anônimos). Nas palavras dele: “eu fui obrigado a olhar no espelho e enxergar o problema. O problema era Scott Shepherd”.
Daryl e Scott hoje são amigos e se apoiam mutuamente nesse caminho lento e difícil que é olhar para o outro sem rótulos. Os dois hoje participam de marchas e reuniões da KKK para construir pontes de diálogo que ao poucos vão revelando as camadas mais internas, mais frágeis e humanas de seus interlocutores. Para Daryl, a convivência fraterna com o o inimigo faz com que ao longo do tempo as certezas cristalizadas comecem a rachar até que elas desmoronam e o que sobra é aquilo que nos faz iguais – nossa humanidade.