Diante dos atos organizados nos Estados Unidos por grupos defensores de uma suposta supremacia branca, associados ao neo-nazismo e à Klu Klux Klan, que disseminam ódio aos judeus, aos estrangeiros, aos negros e aos homossexuais (em resumo, a todos que não forem percebidos como brancos, heterossexuais e “genuinamente” norte-americanos), nos perguntamos – como podemos equilibrar a relação entre tolerância e liberdade de pensamento no mundo contemporâneo? Vejamos três níveis de compreensão da realidade:
Para formadores de opinião de massa nesses tempos de internet, como o polêmico comediante Rafinha Bastos, tanto os defensores da hipotética supremacia branca, quanto os anarquistas e ativistas pelos direitos humanos e minorias que se posicionaram frontalmente contra a manifestação de ódio, estão errados. Na leitura de Rafinha, o melhor remédio contra a intolerância é dar espaço para que esse discurso se manifeste livremente. Ele abomina o discurso racista, mas igualmente abomina a crítica que resiste a esse discurso (o “politicamente correto”), que para ele apenas cumpre o papel de instigar mais o ódio dos supremacistas brancos.
Já o ativista Christian Picciolini, que entre 1987 e 1995 foi um membro ativo de grupos neo-nazistas e hoje trabalha para acabar com esse ódio em sua ONG “Life After Hate” (a vida depois do ódio), acredita que é preciso expor as mentiras que embasam o discurso segregacionista. Por entender que é um paradoxo afirmar que liberdade de expressão deve garantir a expressão de grupos que rotulam e objetificam outros grupos, Picciolini trabalha para expor as ações dos neo-nazistas, consciente que o que esses grupos oferecem para seus membros é a sensação de pertencimento e de propósito, que eles não encontraram em suas vidas.
O professor Dr. Cornel West, da Universidade de Princeton, que participou da manifestação de oposição ao ato dos supremacistas brancos em Charlottesville, defende uma ação diretas das minorias a quem esse ódio é dirigido. Em suas palavras:
“O que desarma o medo é o amor. E a justiça é a forma como o amor se manifesta publicamente. Então para estar do lado do amor é preciso lutar pela justiça. É preciso tomar posição e amadurecer, não apenas estar antenado, mas sim estar preparado.”
No vídeo produzido pelo canal independente de notícias VICE, que acompanhou o ato em Charlottesville, pelo ponto de vista dos neo-nazistas, deixa claro que o nível de ódio é tão agudo, que o diálogo é impossível. A cena do atropelamento (minuto 11:25) é pura selvageria, e a justificativa dos supremacistas brancos para tal brutalidade (no final do vídeo) é completamente sem sentido.
Posturas como a de Rafinha Bastos, apoiadas e difundidas por grupos como o ILISP – Instituto Liberal de São Paulo, que afirmam que os dois lados desse confronto estão igualmente equivocados e que só a liberdade total de discurso (mesmo que seja de incitação ao ódio) é a resposta certa (moralmente correta), não consideram dois pontos importantes. Primeiro, que qualquer grupo que se reúna em torno de um discurso de ódio direcionado aos OUTROS, reforça o sentido de identidade desse grupo, e por isso é atrativo para pessoas emocionalmente fragilizadas, que se sentem perdidas, sem um propósito. Segundo, que exigir que os grupos que estão sendo atacados (expulsos, diminuídos, responsabilizados, objetivados, etc), não reajam com alguma violência, apontando que isso apenas aumenta o confronto de parte a parte, é se colocar em uma posição moralmente superior, o que não é o caso nem do Rafinha Bastos, nem de Donald Trump que declarou essa mesma posição “liberal” em seu primeiro pronunciamento depois do confronto em Charlottesville.
Rafinha e os liberais que defendem a bandeira da liberdade total como “mão invisível” que vai resolver todos os problemas do mundo, não percebem o perigo que ideias e discursos desumanizantes representam em uma cultura que é bastante frágil emocionalmente.
O ativista Christian Picciolini claramente já entendeu o tamanho da complexidade do assunto. Ele mesmo foi cooptado pela ideologia desses grupos extremistas por causa de um vazio interior e de uma sensação de não pertencimento. Essa mesma condição que se desdobra em burnout, depressão e suicídio, tem várias causas somadas, como o contexto econômico global, a inevitabilidade do aquecimento global, o consumo como definidor de identidades e anestesiador de consciências, etc.
Já o Dr. West apela para o amor. Não exatamente o amor fraterno da não-violência de Gandhi e Martin Luther King, mas o amor como luta coletiva pela igualdade de condições e pela justiça. Nesse momento, ele vê a resistência ao discurso de ódio como forma de luta por justiça num país onde o próprio governo adotou uma postura (falsa) de autoridade moral acima do bem e do mal.
Por que nós construímos essas narrativas para nos sentirmos bem conosco mesmo? Por que nós nos autoenganamos para anestesiar o vazio que nos consome por dentro? Essa é a base dos problemas que nos engolem todos os dias. Respostas simplistas são apenas uma manifestação da nossa incapacidade de lidarmos com tais questões internas, e por isso ideias como essa dos supremacistas brancos, não são uma escolha genuinamente livre.
Nós podemos nos preencher sem recorrer a fantasias de superioridade ou de demonização do OUTRO. Mas para isso é preciso primeiro olhar para as coisas que acontecem no mundo e entender que elas são complexas, assim como nós mesmos e os OUTROS somos seres complexos. Precisamos avançar nossa compreensão da realidade alguns passos e incluir nossa própria fragilidade nessa leitura, para que não sejamos escravos desse nosso vazio interno.
Enquanto o indivíduo não descobre a realidade do seu inconsciente, pode permanecer na condição de vítima de transtornos neuróticos, que decorrem da fragmentação, do vazio existencial, da falta de sentido psicológico, por identificar apenas uma pequena parte daquilo que denomina como realidade.
Joanna de Ângelis
Vida: Desafio e Soluções, cap. 7
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Concordo que não devo dar ibope para essas criaturas que, na minha opinião, estão mergulhadas nas sombras da ignorância e de suas frustrações em se adaptarem a um mundo mais igualitário. Claro, defendo a livre manifestação de sua ideologia, mas que arquem com as consequências de seus extremismos. Não posso ser refém do livre-arbítrio ilimitado de Criaturas que não me respeitam e, caso não forem contidas, partiriam pra violência física. Conviver com essas ideologias é tarefa complexa pra mim, pois a sinto-me tentado a reagir também com violência, mas a voz da razão diz a mim que o caminho deve ser outro: do amor!
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