Menos regras, mais inspiração

Ao escrever sobre Sócrates, o pesquisador inglês Francis Cornford ressalta que a filosofia ética do pensador grego minou a moralidade da repressão social, de obediência à autoridade e conformidade aos costumes, e propôs, alternativamente, uma moral que pode ser chamada de “moralidade de inspiração para a perfeição espiritual”. A diferença entre esses dois tipos de moralidade pode ser entendida em analogia com a diferença entre as leis proclamadas no Monte Sinai e o sermão da montanha, sendo a moral de inspiração mais criativa, flexível, radicada na essência do próprio sujeito. Maria Montessori, Cicely Saunders e Nise da Silveira, são mulheres que, em um sentido ou em outro, nos mostram o quanto a sua moralidade “inspirada” rendeu frutos notáveis.

captura-de-tela-2016-12-02-as-20-42-33

Embora a entrada feminina nas áreas profissional e pública tenha sido uma longa e irregular construção histórica, influenciada por diversos fatores – desde a influência cristã que facilitou a ascensão das mulheres ao poder e à profissão no início da Idade Média (assim enfatiza a historiadora do período Reginé Pernoud), até falta de mão-de-obra durante as guerras mundiais – no campo das discussões teóricas, intelectuais ainda disputam a figura feminina e o sentido de sua atuação na sociedade. Estamos falando da disputa entre a visão tradicional do papel feminino como o papel de mãe, e a perspectiva, de inspiração ora marxista ora existencialista, mas, em geral, de esquerda, da mulher como um ser humano que se diferencia do homem simplesmente por uma construção cultural usada como instrumento de dominação. Enquanto cristãos conservadores consideram que a vocação principal da mulher leiga é santificar-se como esposa e mãe, e subordinam a essa condição a atuação da mulher em outros campos, teóricas feministas do século XX, como Simone de Beauvoir e Shulamith Firestone, consideram que expressões tradicionais da feminilidade, como o casamento, a família, a maternidade, os cuidados com a infância e a velhice, entre outros, são imposições culturais que devem ser expurgadas da identidade feminina.

Firestone, por exemplo, advogava a primazia da reprodução artificial como um meio de liberar as mulheres da gravidez, a legalização do aborto em qualquer circunstância, o controle estatal da reprodução humana e dos cuidados à criança, para evitar a reprodução de papeis sociais tradicionais. Beauvoir também considerava que as mulheres não deveriam ter a opção de permanecer como donas de casa com seus filhos, para desconstruir a hegemonia dessa divisão de papeis. Vendo na chamada família patriarcal o lugar onde as pessoas aprendem a obedecer autoridades e a distinguir-se em diferentes classes – em prejuízo da sociedade igualitária almejada – tais teóricas enxergavam no fim da instituição familiar a dissolução de qualquer distinção entre os gêneros masculino e feminino, e até mesmo entre crianças e adultos, como enfatiza Firestone.

O que vemos é que, assim como alguns religiosos extremistas, as feministas que citamos forçam um entendimento de que não é possível para a mulher ser mãe e ser membro de uma família, e ao mesmo tempo ter o mesmo espaço político e/ou profissional que os homens.

Ao nosso ver, entretanto, há um ponto de solução entre e acima desses dois extremos, que melhor valoriza a figura feminina nas suas características transculturais e na construção histórica de sua identidade, e esse ponto é melhor captado sob a perspectiva de uma moral de inspiração. Figuras como Maria Montessori, Nise da Silveira e Cicely Sounders, que destacamos a seguir, encontram um ponto de união flexível entre a independência e a coragem de desafiar padrões sociais no mundo da política e do trabalho, e um olhar criativo para o cuidado e a humanização das práticas profissionais de saúde e educação, que a abordagem de pesquisadores do sexo masculino não tinha captado até então.

captura-de-tela-2016-12-02-as-20-46-26Maria Montessori foi uma das primeiras mulheres a formar-se em Medicina na Itália. O filme Maria Montessori, una vita per i bambini retrata a vida de uma pessoa ousada, que enfrentou o ambiente embrutecido de uma faculdade de medicina totalmente masculina; uma mulher inteligente, perspicaz e criativa, que enxergou em crianças consideradas “deficientes” pela sociedade da épocaa realidade de meninos e meninas privados de um ambiente educativo. Montessori também quebrou as regras das convenções sociais para o amor, ao relacionar-se com seu professor, e sofreu, abandonada, quando a família dele o aconselhou a se casar com outra pessoa, o que de fato ocorreu. Apesar da dor de uma gravidez escondida, a médica e educadora não desistiu de seu projeto educacional, e, assim, transmitiu sua visão de criança e suas práticas pedagógicas para os próximas gerações, impactando o mundo todo.

captura-de-tela-2016-12-02-as-20-46-43Na Inglaterra, uma menina mais alta do que média de sua escola nunca se sentira adequada. Esse desconforto se tornaria mais tarde uma inspiração para a compaixão com as pessoas de alguma forma excluídas. Os pais da jovem não aprovavam seu desejo de tornar-se enfermeira, mas, quando irrompe a segunda guerra mundial, ela os desafia e ingressa no curso de Enfermagem, obtendo rapidamente um certificado especial para atender os feridos pelo conflito. Em uma trajetória bastante incomum, a pioneira na área de cuidados paliativos e fundadora do primeiro hospital focado nesse tipo de atendimento, Cicely Sounders, inicialmente agnóstica, passa a acreditar em Deus através do contato com amigos cristãos e envolve-se em um amor espiritual com um de seus pacientes, um imigrante polonês e judeu. Desse relacionamento extrai a ideia que irá considerar, após a tristeza vivida pela morte de seu amigo e de seu pai, um chamado de Deus: A criação de uma instituição para pacientes terminais, em que conhecimento científico, cuidado e amor estivessem integrados.

Um cirurgião conhecido de Cicely aconselhou-a a cursar outra graduação, alegando que os médicos não dariam ouvidos a uma enfermeira. A mulher comprou a ideia, ingressando como estudante na Escola de Medicina do Hospital Saint Thomas em 1951, aos 33 anos de idade. Nada a constrangeu contra a amizade profunda que formou com outro amigo polonês, nem contra casar-se aos 61 anos, com um terceiro polonês, devoto católico de 79 anos. Cicely idealizou e planejou a construção de um novo hospital focado em cuidados paliativos, Saint Christopher’s, iniciada em 1965. Uma ouvinte atenciosa de seus pacientes, criou o conceito de Dor Total, em que os aspectos biológico, social, psicológico e espiritual eram considerados ao se avaliar o stress da pessoa hospitalizada. Cicely Saunders e seu esposo passaram seus últimos dias em Saint Cristopher, o hospital que ela fundara.

captura-de-tela-2016-12-02-as-20-47-03Nise da Silveira também foi a única mulher formada entre os 157 estudantes da turma de 1926 da Faculdade de Medicina da Bahia, contrariando a aspiração de sua mãe de que, como ela, a jovem se tornasse pianista. Já casada com seu colega de faculdade, a alagoana estabeleceu-se no Rio de Janeiro, trabalhando na área de psiquiatria e escrevendo artigos sobre Medicina para o jornal. Circulando nos meios críticos e de estudos marxistas, Nise foi presa pelo regime do Estado Novo, e dividiu cela com Olga Benário, judia que foi entregue pelo governo brasileiro à Gestapo de Hitler. Nos 15 meses de reclusão no presídio Frei Caneca, Nise conheceu Graciliano Ramos, que fez dela personagem de seu famoso livro “Memórias do Cárcere”.

Após sair da prisão e viver alguns anos na clandestinidade, Nise é reintegrada no serviço público de saúde, na área de psiquiatria, colocando-se totalmente contra os choques elétrico, cardiazólico e insulínico, as camisas de força, o isolamento, a psicocirurgia, entre outros instrumentos da época. Para a médica, esses métodos eram brutais e remetiam fortemente às torturas do Estado Novo aplicadas aos dissidentes políticos. Em 1946, Nise funda a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR) do Centro Psiquiátrico Pedro II, e começa a fazer diversas modificações no seu trabalho com pacientes psicóticos e, especialmente, esquizofrênicos.

Enquanto a Terapia Ocupacional praticada nos hospitais consistia em fazer os doentes limparem as salas e objetos, Nise inaugura um ateliê de pintura para os pacientes e incluiu a presença de animais nos centros de convivência. As pinturas dos internos foram expostas em congressos internacionais de psiquiatria, em museus e câmaras municipais no Brasil. A expressão artística, a relação dos pacientes com os animais e até com a própria Nise eram, segundo a médica, evidências de que os esquizofrênicos não tinham “embotamento afetivo”, como as teses da época sustentavam. Pioneira das ideias de Laing e Cooper (antipsiquiatria), Basaglia (psiquiatria democrática) e Jones (comunidade terapêutica), e precursora dos atuais hospital-dia, lares abrigados e centros de convivência, Nise considerava que o doente psíquico encontra na arte a forma de expressar seu mundo interno quando a via racional está bloqueada, e que o afeto era “uma mola propulsora em tudo”.

Desafiar regras e padrões culturais estabelecidos pode ser dramático, a prisão de Nise e a gravidez indesejada (pelo pai da criança) que viveu Maria Montessori mostram isso bem. Por outro lado, essas mulheres, abertas ao público e não somente isoladas no domicílio particular, muito contribuíram para a humanização das nossas práticas de saúde e educação. Essas mulheres não só bem utilizaram, também ampliaram o arcabouço teórico e científico que é patrimônio da nossa civilização. Podemos nos perguntar, entretanto, quanto da sensibilidade e criatividade que elas tiveram seria herdeira da longa construção feita pela nossa ancestralidade feminina da habilidade de cuidar, proteger, nutrir e educar as pessoas mais frágeis (crianças, doentes, velhos). Talvez uma Shulamith Firestone considerasse que a mulher precisa “ser libertada” da criança e dos cuidados. Maria Montessori e Cicely Saunders transformaram, sem propor ditaduras, o cuidado em uma questão de todos. Como mulheres, podemos nos perguntar se nossa perspectiva de feminismo não deve ser a de uma moralidade de inspiração: que as regras rígidas sejam rompidas; que os princípios inspiradores frutifiquem mais.

Litza Amorim

* texto originalmente publicado no Boletim da ABPE do segundo semestre de 2015, que produzimos com exclusividade para os nossos associados.

2 respostas para ‘Menos regras, mais inspiração

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Gravatar
Logotipo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Google

Você está comentando utilizando sua conta Google. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s