Nesse filme de 2017, dirigido por Geoffrey Orthwein e Andrew Sullivan, um jovem casal estadunidense, Riley e Jenai, faz sua primeira viagem ao exterior, para a Islândia. Após um dia de visitas a pontos turísticos, Jenai vê, da janela do quarto do hotel, durante à noite, um clarão no céu, parecido com o fenômeno da aurora boreal. No dia seguinte, o casal se depara com uma situação um tanto singular: a cidade estava completamente vazia.
Num primeiro momento, eles tentam racionalizar o fato, imaginando tratar-se de um feriado ou um evento que esvaziara a cidade. Mas não havia ninguém no hotel, nas lojas, nas ruas. Os canais de tv vão aos poucos saindo do ar e a internet não funciona. Passeiam por uma cidade deserta. Jenai liga para os parentes distantes, mas eles não atendem às ligações.
Então, o que era singular se torna perturbador. Aos poucos, vão se dando conta que não somente os habitantes da cidade haviam desaparecido, mas também que eles estavam absolutamente sozinhos no mundo e, para piorar, distantes de casa.
O que teria acontecido? Eles não conseguem encontrar uma explicação dentro daquilo que conheciam, nem mesmo a partir dos conhecimentos e das categorias de uma sociedade de massa e tecnológica do século XXI. Tudo o que lhes era próximo acabara.
A partir daí, uma diferença fundamental se estabelece entre o casal, no que toca ao modo de como lidar com a nova situação. Ambos sabiam da gravidade do momento, que viviam algo misterioso, que estavam no limiar do novo, do desconhecido, do recomeço. “O mundo é inteiramente nosso”, diz Riley, que adota uma postura mais pragmática, às vezes próxima ao paganismo e sua adoração à natureza. Por mais afetado que estivesse, bastava-lhe estar com quem amava, e a sua preocupação se resumia em viver o momento e garantir a subsistência. Porém, Jenai traz toda uma carga afetiva e conflitos psicológicos que a constrangem a se estar numa situação que, para ela, era deplorável. O mistério lhe era insuportável, e mesmo habitar uma casa “abandonada” lhe era difícil . Enquanto Riley questiona “o que faremos agora?”, Jenai responde “quero ir para casa agora. Se é que ainda há uma casa para voltar”.
Portanto, a adaptação dos dois ao novo cenário se mostra muito mais difícil do que pode teoricamente parecer. Enquanto Riley encara a situação até como um tipo de aventura, para ela tudo se mostra assustador, e busca na linguagem religiosa a interpretação daquilo tudo, questionando se seria o apocalipse, o fim dos tempos, uma espécie de provação como a de Jó.
Experimentar uma liberdade absoluta tem um lado atraente, mas também perturbador. E no novo Éden em que se encontravam, numa paisagem natural exuberante, a verdade vai se impondo de modo impactante: por mais que tentassem esquecer, o mundo que conheciam havia acabado, estavam absolutamente sozinhos, entregues à sorte e aos caprichos da natureza, da dor, da fome e, principalmente, do desconhecido.
E isso, paradoxalmente, conectou-os ao mundo, ainda que de modos diversos. Jenai pergunta: “Já pensou onde estamos?”. Ele responde: “Sim. Você ouviu isso? O mundo pulsando? Adoro aqui. Consegue ver?” Não, ela não conseguia. Enquanto ele via beleza em paisagens naturais e urbanas (o foco que Riley dá no rosto do designer gráfico Stefan Sagmeister pintado no muro, como se conversassem pelo olhar, é bem significativo), até mesmo numa carcaça de aeronave, como se tudo aquilo carregasse certa magia que ele venerava, ela só via medo e lixo.
Surpreendentemente, eles encontram um senhor, de nome Nils, idoso e muito fraco. O que era para ser motivo de alegria, acaba se tornando no ponto de virada para Jenai. Em dado momento, Riley diz a ele que “é bom saber que não estamos sozinhos”, e ele responde “Estamos, sim, todos nós”. Riley replica, dizendo que agora eles eram três, mas o senhor responde que “Tem um, um e um. Cada um com seu próprio espaço. Todos sozinhos no mar”. Num diálogo com Jenai, a qual buscava uma interpretação providencial àquele encontro, o senhor Nils diz que “Deus não nos leva em conta. Seu plano é existirmos no mundo que ele criou para nós, não para existirmos no mundo dele”. Então, torna-se irrelevante saber se Deus existe ou se estamos dentro de uma cadeia providencial de acontecimentos. O que importa são os sentidos que atribuímos ao mundo e à existência. E, sobre a solidão que ela sentia, ele vai ao ponto central, dizendo que a palavra gaulesa Hiraeth significava tanto o pesar por um lar ao qual não se pode voltar, quanto ansiar por um lar do passado, que pode nunca ter existido.
Talvez Erich Fromm nunca tenha sido tão bem representado no cinema, quando afirma que a descoberta do divino que somos importa em rompermos com os laços “incestuosos”, afetivos (com pessoas, família, grupo social, pátria-mãe, etc.), que nos mantém seguros e protegidos, mas também presos a uma teia de relações e de pré-compreensões do que somos e do que podemos ser. Dão-nos segurança, mas também impedem que cresçamos. Jesus, dentro da tradição profética judaica, tratou disso ao dizer “quem são minha mãe e meus irmãos? Todo aquele que cumpre a lei de Deus é minha mãe e meu irmão”. Mas Jenai não consegue viver sem o pé no seu passado histórico e afetivo, o que torna o presente e o futuro aterrorizantes.
Esse encontro tira dela, tão ligada às suas raízes, todo o sentido da vida. Jenai, sem o seu esteio de afetos, desprovida de rostos e paisagens familiares, sem ancorar-se em seu passado, perde toda a referência de humanidade. A linguagem na qual ela busca lidar com o mundo, antes religiosa, torna-se cética e derrotista. Se o mistério em que viviam não tinha solução, então para que viver, para que enterrar mortos, para que buscar abrigo, para que criar? Não havia mais qualquer esperança, sentido ou razão para estar naquele verdadeiro nonsense.
Desse modo, o filme se reapropria de diversos elementos da narrativa bíblica. O clarão que supostamente teria sumido com as pessoas pode ser um modo de dizer que Deus se “arrependeu da criação”, tal qual o dilúvio. O casal remete diretamente a Adão e Eva. Ambos sendo obrigados a viver num lugar desconhecido e inóspito é bem a expulsão do paraíso. A faixa vermelha que Jenai coloca na porta das casas lembra o sangue de cordeiro no Egito a proteger o povo judeu das pragas. O inesperado surgimento e morte do senhor Nils (aliás, um pescador) se assemelha às aparições de anjos e mensageiros, e o seu discurso aparentemente nihilista e individualista nos lembra o “a cada um segundo as suas obras”.
A todo o momento, o mito judaico da criação não é somente evocado. A tensão que os atores, a paisagem e a trilha sonora transmitem revelam como toda a ridicularização a que foi submetido esse mito nos fez perder dois pontos fundamentais da vida humana e social.
Primeiro: somos enredados de tal modo em nosso cotidiano que acabamos vendo-o como permanente, e não como um momento transitório, como se o que houvesse, em termos de realização humana, já fosse perfeito. Bastam alguns acontecimentos – doença, morte, privação, etc. – para nos recolocar diante da fragilidade da vida e da densidade do existir.
Segundo: como é difícil e árdua a tarefa de começar algo, de instaurar o novo, seja mudar hábitos, seja renovar as ideias, seja parir uma nova civilização. Os personagens são convocados a uma tarefa desse tipo, assim como nós também o somos diariamente, mas a diferença entre ambos marca bem cada um de nós diante da possibilidade de criar.
Nesse sentido, os personagens representam tanto aqueles que se sentem solitários num mundo que não os compreende mais, quanto aqueles que anseiam ou descobrem o novo, mas não conseguem ainda vislumbrá-lo acontecendo, podendo paralisar-se de medo (Jenai) ou procurar enfrentá-lo de alguma forma (Riley). Como diz Rubem Alves, trata-se de falar sobre o que está ausente, sobre aquilo que ainda não existe ou de amar o que ainda não nasceu.
É assim que, deixando de ver o desaparecimento das pessoas de modo literal, toda a mudança que ocorreu com as personagens, toda a carga que o mundo lhes passou a solicitar desde que se perceberam sozinhas no mundo poderia ocorrer mesmo com muitas pessoas ao redor. Talvez seja bem esse sentimento de solidão e incompreensão pelo qual passam muitos reformadores, pensadores, mestres espirituais e, muitas vezes, pessoas comuns, verdadeiros eremitas que caminham em meio à multidão, que anseiam por amor e afeto num mundo cercado de maldade e ignorância por todos os lados, que tentam falar e viver o novo, que tentam mostrar um possível recomeço naquilo que, para eles, não passa de um deserto. O suicídio de Jenai, portanto, é sobretudo simbólico: é, antes, um recuo, um retorno ao mundo que lhe era familiar.
Tudo isso, no entanto, passa pelo caráter moral que o filme trabalha, e o título ao mesmo tempo abre e fecha uma reflexão que, acredito, os autores quiseram abordar.
Bokeh é uma expressão da fotografia para as áreas fora de foco ou distorcidas. Significativo é o fato de Riley carregar consigo uma máquina fotográfica muito antiga, para “capturar o momento certo, em que tudo é ótimo”, mesmo as imperfeições. Ele deixa claro que não queria um equipamento moderno, que corrigisse artificialmente distorções que são naturais.
Isso pode significar, de modo bem sutil, que nem sempre o moderno é bom ou melhor, e que os tempos antigos também possuíam a sua sabedoria, que o passado também nos traz coisas boas, que talvez se perderam pelos caminhos de uma humanidade que se acostumou a registrar como grandeza as façanhas de loucos e assassinos, relegando ao esquecimento as magias de um cotidiano simples e esplêndido.
Mas, mais profundamente, também quer dizer que o ponto nodal da condição humana seja descobrir que, mesmo com tamanhas imperfeições, é possível capturar o “momento certo”, que podemos capturar o belo, o bom, o ótimo mesmo que o foco não nos pareça adequado. Isso significa que cada época, cada sociedade e cada indivíduo constrói uma história que se capta a cada instante e simplesmente se faz. Talvez, mais que isso, a mensagem seja que a perfeição, em termos humanos, sempre se faz acompanhar das imperfeições, assim como a vida na morte e a felicidade no sofrimento, e que esse é um mistério sobre o qual, mais do que entender, precisamos conviver.
Ser perfeito a partir da perfeição é uma tarefa para deuses, não seres humanos. E o filme mostra que o instante humano é justamente isso: o humano que, mesmo pensando na perfeição, mesmo querendo ter o domínio do todo, vive e cria conforme as suas imperfeições, e que, por isso mesmo, sempre está às voltas com a possibilidade do novo, do recomeço. Criações perfeitas não precisam ser refeitas, e a fala do senhor Nils é muito interessante: a existência de Deus nos é indiferente justamente porque ele é perfeito. O que deve nos interessar é aquilo que nós criamos a partir do que há e os sentidos que damos ao fato de existir.
É claro que uma proposta dessa ofende uma cultura fundada no esteio da reforma protestante e do iluminismo e as formas de valorização da vida cotidiana e evitação do sofrimento que eles geraram, cada qual ao seu modo. Ofende também a sua moralidade sempre tão certa e inexorável. Mas, sem dúvidas, ela dialoga muito mais com as nossas vicissitudes e capacidades, não necessariamente com o que devemos ser, mas com o que somos, e está muito mais pronta a abraçar o ser humano como um todo do que muitas propostas religiosas e filosóficas mais preocupadas com modelos de santidade e de correção do que com modelos de humanidade.
De qualquer modo, trata-se de uma película que vale a pena assistir e refletir sobre o sentimento tão generalizado de abandono e de solidão num mundo repleto de incertezas e riscos, assim como sobre a tarefa, ao mesmo tempo grandiosa e perturbadora, de criar, de recomeçar, de “capturar o momento certo” num mundo que, em regra, não dá o “foco perfeito”, e que pode ser tanto polifônico quanto mudo, tanto povoado quanto vazio.
Raphael Faé é formado em direito e mestre em filosofia, editor do Jornal Crítica Espírita.
Sensacional a sua abordagem e o conteúdo me deixou com muita vontade de assistir ao filme. Vamos em frente, recomeçando sempre que há oportunidades.
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“Meu mundo caiu”, frase de uma composição musical famosa. Mundos materiais e psicológicos desmoronam e se erguem todos os minutos nessa dinâmica inevitável do “vir a ser”. Maravilhosa onda sempre prestes a te arrastar e te afogar ou te fazer rir muito depois de uma roladas pela areia. Com essa metáfora, parabenizo o autor Raphael que de imediato lança uma leitora como eu, num afogamento, para depois cuspir a água salgada e reverenciar a perturbadora, mas necessária força do emergir.
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Ótimo conteudo, a obra também é muito boaa
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Só nao entendi a cena do email chego a ela ao final… email atrasado? E como e pq ela revelaria as fotos, dando a ele e depois fugindo. Sadismo ou despedida?
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Adorei o seu comentário sobre o filme. Sobre recomeçar e as diferebtes formas de encarar isso. Gostei muito do filme também.
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Excelentes reflexões… Traduziu em palavras as sensações e incômodos existenciais que o filme traz. E em meio a ponderações tão densas, é um bálsamo a reflexão de Rubem Alves… Amar o que ainda não nasceu, que lindo!
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Depois do seu comentário, vi o filme de outra forma. Já tinha me apaixonado por ele, mas você me mergulhou na real profundidade dele. Obrigada!
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