Quando 5 testemunhas de um atropelamento divergem.

Um texto é uma construção. Quando penso num tema aqui para o blog, parto de leituras ou de uma vivência, junto argumentos, pesquiso. Vou reunindo os materiais e as ferramentas para estruturar uma sequência de palavras que conduzam o leitor a trilhar um caminho específico. Começo com uma afirmação ou com uma pergunta, talvez com um relato pessoal ou até uma descrição, estabelecendo assim o cenário, o terreno onde a construção vai se dar.

Depois vem o contraponto que, no caso desse texto, é:  como se aprende a fazer isso? A pedagoga e pesquisadora Noemi Lemes em sua tese de mestrado intitulada Argumentação, Livro Didático e Discurso Jornalístico, Vozes Que se Cruzam na Disputa pelo Dizer e Silenciar, nos alerta que os alunos brasileiros saem da escola sem saber argumentar, defender pontos de vista ou se expressar com clareza. A análise dos materiais didáticos, que ela faz, mostra que os estudantes são expostos a textos que não apresentam opiniões divergentes. São na sua maioria um discurso curto, meramente informativo e unilateral.

Num artigo recente da jornalista Vanessa Babara para o jornal New York Times, as novelas da Globo e os telejornais são alvo de crítica pelo seu conteúdo raso, irreal e fútil. Com a justificativa de se adequar o texto ao público, segue-se a fórmula de William Bonner que, há alguns anos, comparou o espectador médio do Jornal Nacional ao personagem Homer Simpson dos desenhos animados. Mas expor o público a um material calcado no senso comum, que busca mais a lágrima ou o riso do que o esclarecimento das complexidades políticas e econômicas (no caso dos telejornais), ou apresentar a realidade embalada em papel de celofane com periferias cenográficas, mordomos e padrões estéticos impossíveis (no caso das novelas), reforça um cultura inflada de fantasia e sem reflexão. Um círculo vicioso que só ganha força.

Noemi Lemes propõe algumas soluções de como juntar ciência, filosofia e literatura de forma interdisciplinar. Apresentar textos jurídicos quando o assunto é a pena de morte expõe os alunos a um vocabulário e um tipo de organização do pensamento que abrem portas para novos mundos. Trazer um diálogo de dois personagens da literatura romântica do século XIX mostra como se davam as trocas de argumentos numa sociedade de valores rígidos. Mas para isso é preciso extrapolar a apostila do sistema de ensino e buscar caminhos criativos.

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Meu pai sempre cita uma aula de redação que teve no antigo ginásio, cujo exercício proposto era escrever o ponto de vista de 5 pessoas posicionadas em pontos diferentes de um cruzamento ao testemunharem um atropelamento. A experiência de simular diferentes olhares, com opiniões conflitantes sobre o mesmo fato, fez com que durante sua vida, meu pai tenha feito uma ponte entre os conflitos e situações que viveu e  aquele exercício que ele fez, quando era ainda adolescente. O professor, que propunha tais desafios aos alunos, marcou profundamente a formação do meu pai, assim como muitos de nós embalamos na memória mestres que nos ajudaram a moldar nossa compreensão do mundo.

Desafiar e não subestimar, essa é a postura que muda o cenário da educação que temos hoje no Brasil. Quando optamos pela simplificação, pela resposta fácil, estamos fazendo tudo aquilo que criticamos nos alunos. Evocamos a preguiça e o desinteresse do outro para justificar nossa própria preguiça, nossa formação rasa,  nossa insegurança. Educação requer curiosidade e brilho no olhar, tanto de educadores quanto de educandos. A boa notícia é que essas duas características são inatas, só precisamos alimentá-las!

Mauricio Zanolini

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