Fiz há alguns dias, a convite da EFAPE (Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Profissionais da Educação do Estado de São Paulo) uma palestra e uma oficina sobre comunicação não-violenta (CNV). Já abordei esse assunto aqui no blog algumas vezes, mas ele é essencial, especialmente em tempos de divisão, como os que vivemos hoje. Trocar impressões, debater e ouvir relatos daqueles que estão na linha de frente da educação (a área mais importante na construção de um país), é uma experiência forte.
São a dor, a angústia e o desamparo que levaram esses profissionais a buscarem uma solução alternativa para a violência constante a que eles são expostos (e que eles também alimentam). Mas a CNV, que é compreendida de forma rasa como uma técnica para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais (esse é o subtítulo do livro criador da CNV, Marshall Rosenberg, em português), vai muito mais fundo. A tradução do título original do livro é: Comunicação Não-Violenta, a linguagem da vida. Por isso é quase inevitável o desapontamento das pessoas quando apresentamos a elas essa ideia. Aquilo que parecia uma solução rápida, um passo-a-passo que levaria a resultados concretos, se revela uma investigação profunda e desconfortável sobre nossos condicionamentos e convicções.
Além disso, a CNV é um exercício constante de empatia. Incansável mesmo. Num diálogo, aquele que preza a não-violência vai passar a maior parte do tempo construindo e mantendo a abertura através da exposição de suas próprias fragilidades e do reconhecimento da legitimidade da dor do outro (sem julgamento ou solução). Só que para isso é preciso estar disposto a olhar pra si mesmo, para as próprias feridas, reconhecendo nelas as mesmas dores que o outro sente. Reconhecendo que, no fundo, somos iguais.
O que mais me impressiona na CNV é que o caminho que levou seu criador, o psicólogo clínico Marshall Rosenberg a olhar para a linguagem humana, foi a ação de figuras como Martin Luther King, Gandhi, Tolstoi e Thoreau. Todos eles, em diferentes contextos, diferentes lugares, culturas e religiões, compreendiam que o ser humano é um com a natureza, com a criação. Nas visões dessas pessoas, muitas vezes contra a corrente hegemônica de suas respectivas religiões, não havia separação entre bons e maus, anjos e demônios, homens e deuses, céu e inferno. Todos eram iguais, essencialmente divinos, todos seres de potencialidades. E é essa visão de ser humano a raiz da CNV. O que seu autor chama de linguagem da vida é a maneira de nos comunicarmos que ficou perdida, soterrada pela luta pela sobrevivência, pelo medo do outro. Quando criamos e fortalecemos uma cultura que nos divide e nos classifica pelas nossas diferenças, o medo leva à violência.
O professor que influenciou o trabalho de Rosenberg foi o também psicólogo Carl Rogers, que desenvolveu a abordagem centrada na pessoa. Para Rogers o vínculo era essencial no processo terapêutico (e por decorrência, também no processo educacional). No livro Liberdade de Aprender, Rogers entende que o papel do educador é facilitar o desenvolvimento do educando de forma não diretiva, sem conduzi-lo a um caminho pré determinado, mas seguindo os interesses e inclinações do educando. A postura de Rogers é de total confiança no ser humano (tanto em nós mesmos como no outro), que pode ser classificada como um visão positiva ou humanista.
Voltando aos professores e profissionais da área de educação: posso dizer que nessa busca por soluções para suas dores, angústias e desamparo, a CNV não é exatamente o que se espera. Aprender que carregar o peso de todas as violências que testemunhamos é uma escolha, e que portanto não precisamos fazer isso. Pensar que os insultos, as agressões, a falta de interesse dos alunos não são afrontas pessoais, mas sim pedidos de ajuda. Que diretores, colegas de profissão e pais de alunos têm suas próprias dores, angústias e desamparo, e que agressões e perseguições são manifestações tortas dessas bagagens emocionais. Tudo isso amplia nossa compreensão sobre a complexidade das relações humanas e sobre a nossa própria condição. Só que mais complexidade soa como mais dificuldade para resolver o problema.
O grande mérito da CNV é que, ao mesmo tempo que descortina os mecanismos que construíram esse contexto de violência, nos coloca na posição de agentes ativos da mudança. Nos mostra o caminho para não julgarmos a violência, nos esclarece que nossos sentimentos (em relação às coisas que nos acontecem) são responsabilidade nossa (e não do outro, já que ninguém pode nos fazer sentir nada). Que podemos sim ajudar o outro a não julgar e a se responsabilizar, e que a empatia constante é o que constrói a ponte e cria o vínculo necessário para que os dois lados se mostrem frágeis um ao outro, seres humanos autênticos que se reconhecem como iguais. Portanto entender a complexidade nos leva a ver o que pode ser feito. Essa clareza nos dá foco. Com clareza e foco precisamos apenas ser incansáveis.