Esse texto pretende iniciar uma reflexão. Não é a palavra final, até porque os novos tempos exigem movimentos em direção a um campo de diálogo que ainda está por ser criado. Conceitos antigos para o mundo antigo. Conceitos novos para o mundo novo. Os impasses atuais estão nos exigindo a busca por novos paradigmas.
Penso em destacar dois grandes grupos de transformação da nova geração e a partir daí repensar a nossa atividade na universidade. O encontro com esses novos jovens de 17 a 20 anos que têm chegado à universidade, nos traz uma interpelação a partir de uma dupla perspectiva: uma nova militância política (novas bandeiras, novo sentimento, nova exigência de coerência, novas estratégias de ação militante) e uma nova visão do ser no mundo (nova relação entre o pensamento e a realidade, nova exigência de coerência no sentido da profissão, novas necessidades de busca de sentido, nova compreensão do seu mundo psíquico).
100% Militância
A nova militância política é marcada pelas bandeiras do multiculturalismo e a concepção da valorização da diferença. Em nosso caso, a questão negra (a afirmação do ser negro), a questão da mulher (e toda a nova sensibilidade para que a sociedade se dê conta da onipresença da violência contra a mulher) e a questão lgbt (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros e todo um universo de definições das possibilidades de identidade e opção sexual).
Os inimigos: o racismo, o machismo e a homofobia. Ou seja, ainda que se reconheça os determinantes econômico-estruturais das desigualdade, o inimigo é um fenômeno da cultura, a questão do preconceito, que aparece no discurso, no comportamento, não só na elite econômica, mas em todos. Essa militância ganha um novo sentimento de combate que se faz 24hs por dia. Há uma exigência de coerência. Todo o cuidado com a fala (o politicamente correto) é pouco. Qualquer deslize pode revelar o seu racismo, o seu machismo, a sua homofobia que estava escondida. “Não passará!” é a atitude guerreira permanente dessa nova geração.
Toda hora é hora de luta: “Por mim e por meus irmãos.” Esse sentimento de pertencimento que faz de um negro porta voz de seus irmãos negros na luta cotidiana contra os grandes e pequenos atos de racismo, de uma mulher porta voz de todas as mulheres violentadas (“um contra todas”) e o mesmo para o lgbt que atacará qualquer ato homofóbico em nome de seus companheiros, no país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo.
E então essa geração chega à universidade e se depara com possíveis inimigos entre os colegas, entre os professores e mesmo a própria instituição. Isso não era assim há tempos atrás. Quando a militância era de classe, a universidade e o professor eram parceiros na luta anticapitalista. Na universidade em que eu me formei nos anos 90, e certamente antes disso, os professores de esquerda eram porta-vozes da nossa indignação contra o sistema. Ainda que ele fosse da classe média, nossos inimigos eram os grandes empresários, as multinacionais, os latifundiários, a direita conservadora. Com a emergência dessa nova militância, o inimigo está em toda parte. Porque o preconceito é uma ignorância que brota em todas as classes.
“Você precisa rever seus conceitos”. Estou aprendendo que preciso rever meus conceitos. Para poder chegar ao meu aluno. Precisamos rever nossa bibliografia (hoje os estudantes questionam se na ementa só tem autores homens e brancos), rever o que é e o que não é passível de debate intelectual em sala. E essa é, creio eu, uma questão que precisa ser aprofundada.
Debate intelectual ou Escuta ativa?
Os tempos atuais exigem o abandono do que se acreditava ser o uso livre da razão. Antes, se num debate intelectual, defendíamos pontos de vista diferentes, eu poderia te acusar de conservador, você me acusar de ingênuo, e tudo não passava de uma disputa intelectual muitas vezes saudável para a produção intelectual. Hoje, no entanto, a defesa dos argumentos está intimamente imbricado com um sentimento profundo de muita dor. Então não há espaço para diálogo, para debates, para relativizações, problematizações das atitudes. Quando um militante dessa nova geração fala, o que ele espera é ser ouvido. É uma dor, dele e de seus irmãos, que precisa ser ouvida. A fala, mais do que um argumento intelectual, é um desabafo. Nessa fala, desabafam gerações, multidões. Contra-argumentar seria indelicado, no mínimo. É portanto uma fala, que pertence só a ele (pertencimento do grupo minoritário) e a mim cabe tão somente o lugar de escuta. Um lugar que pode ser melhor compreendido.
Na minha sala, quando estávamos em um debate sobre essas violências todas da contemporaneidade (metade de uma turma de primeiro período teve um familiar morto violentamente), eu trouxe a perspectiva gandhiana de um movimento de resistência pela não-violência. Eu achei que poderia somar. “Olha, lá na Índia, eles passaram pelas mesmas situações. Perseguição, violência racial, disputa nacional. E houve um grupo que, apesar de sofrer essas mesmas dores que você está me falando que seu grupo sente, optou por uma estratégia de não violência”. Senti que ali na sala a gente estaria vivendo o debate Luther King versus Malcom X. Poderia ser um bom debate. Só que não. Além de não saberem nada sobre Luther King ou Malcom X, eu havia pulado uma etapa. No sentimento dos meus alunos, eu não estava ouvindo a dor deles. Eles não conseguiriam ouvir nada do que eu dissesse. Eu me tornei um inimigo.
Lugar de fala. Cada um precisa reconhecer que fala, não de uma perspectiva universal (a Razão como acreditávamos antes), mas a partir de um lugar social. Muitos militantes trazem o clamor que só quem pode falar é quem vive na pele a dor da violência sentida até aqui. Me lembro anos atrás uma discussão em sala de aula terminar com um estudante me perguntando: “professor, o senhor já passou fome?” Situações assim são muito delicadas. E onde e como construir diálogos assim? Entendamos com a Djamila Ribeiro, autora do livro “O que é lugar de fala?” que um homem branco não pode representar a causa negra ou o coletivo de mulheres, ainda que possa e deva discutir a questão da sociedade patriarcal que é machista e racista, e procurar fazer a reflexão de como é estar como homem branco nessa cultura. Vai ser muito bom, por exemplo, que as mulheres ouçam os homens dizendo como é ser homem nessa sociedade, seus privilégios e também suas dores. Esse documentário, por exemplo, me representa: “A máscara em que você vive“. E de outro lado vai ser revelador de uma face oculta da realidade que os grupos minoritários possam ser ouvidos a partir de suas vivências. Creio que assim, num espaço de partilha, as escutas possam se tornar potentes.
Nos movimentos atuais, as rodas de conversa são centradas na metodologia da partilha. O bastão da fala, é uma herança das aldeias norte-americanas. Quem segura o bastão fala. O grupo acolhe. Não há debate. O pré-requisito é que quem vá em direção ao bastão, vá seguindo a voz de seu coração. Que a fala seja realmente significativa e que venha do coração. Assim conversam os sábios povos ancestrais que sobrevivem há milênios. Assim, criando espaços de escuta, de acolhimento e partilha de sentimentos, os novos movimentos militantes estão fortalecendo seus laços, na sinceridade e na sensibilidade da escuta da dor do outro que, de alguma forma, ressoa em todos na roda.
Será que além de rever nossas bibliografias (eu pessoalmente cheguei à filósofa Simone Weil graças a essa turma) precisaremos ampliar a escuta em sala de aula? Creio que precisamos rever as necessidades de nossos estudantes. Não é só um debate intelectual. É um olhar sobre o mundo no qual nossas vidas estão intensamente envolvidas. Alguém pode defender que sempre foi assim. E de fato os militantes de esquerda do passado não entendiam como as pessoas estavam passivamente caladas diante das ditaduras e do totalitarismo do capital. Mas hoje creio que a tensão está mais acentuada pela proximidade do inimigo.
Outra estratégia que podemos utilizar nas universidades é convidar os novos militantes a ampliar sua agenda de lutas. Aqui na Universidade os professores vem atuando junto aos povos indígenas, aos grupos quilombolas e caiçaras. São outras identidades. Há outras minorias vítimas do sistema. Penso que as crianças sejam um desses grupos. Janusz Korczak no gueto de Varsóvia e no campo de concentração que o diga. Ele que escreveu: “Quando eu voltar a ser criança”, foi um sensível pediatra e educador que levou a vida a lembrar aos adultos que se tornassem mais sensíveis para escutar as crianças. E soube morrer ao lado delas.
Novo paradigma para o psiquismo
A segunda novidade dessa nova geração de estudantes é que eles, jovens de 17 a 20 anos, estão relatando cotidianamente um mal estar psíquico digno de atenção. Sejam trabalhadores ou estudantes que se dediquem em tempo integral a faculdade: são diversos sintomas físicos, aliados ao cansaço, e a situações emocionais de tristeza e insatisfação nas relações. São eles os sobreviventes da medicalização da infância, e de uma forte tendência de diagnosticação da angústia por parte da medicina da mente. Nossos alunos nos contam de história de tda, tdah, depressão, pânico, crises de ansiedade, surtos, sem falar em tentativas, antigas e atuais, de suicídio. Nossos estudantes vivem esse mal estar, chegam à Universidade e precisam encontrar aqui a inspiração para seus projetos de vida e de carreira, o que poderá ser objeto de seus investimentos libidinais (traduzindo da psicanálise, envolvimento afetivo, direcionamento de energias psíquicas) nos próximos anos.
Não sabemos exatamente ainda qual a relação eles tiveram com a filosofia e a poesia na escola. Mas quando chegam nos cursos de humanas na universidade, muitos vão ter contato pela primeira vez com a metáfora da caverna de Platão. E com o olhar dos poetas. O que é o real? E começam a se questionar. E relativizam o senso comum do que é doença mental, o que é sanidade. E começam a rever suas próprias histórias de vida.
Alguns alunos que se achavam loucos (e guardavam em segredo isso) começam a ver a realidade com outros olhos e estão investindo na potência de sua própria sensibilidade “diferente” dos demais. Com o tempo, e em negociação com seus psicólogos e psiquiatras estão deixando os medicamentos. A universidade está, de alguma forma, sendo terapêutica para eles. A troca que fazem com os colegas os fazem perceber que o que antes era visto como sintoma de doença psíquica, pode ser lido como um despertar espiritual. E começam a investir em práticas de equilíbrio físico-psíquico, e sobretudo, em filosofia, porque passam a refletir sobre a realidade e encontrar novos nichos de pessoas “diferentes”: “seus olhos dizem que é uma cadeira mas a física quântica já mostrou que é vazio.” O vazio, que até ontem era temido pelo antigo paradigma (“cabeça vazia oficina…”, ou o vazio como vazio existencial) agora é percebido como lugar de criação e de infinitas possibilidades.
Profissão? Quantas?
Essa geração chega à universidade com a perspectiva de que além da carreira que estão buscando se formar ainda podem ter duas outras formações, ou mais. Nada é fixo em suas perspectivas de futuro, apesar da inevitável angústia que lhes traz essa incerteza. No entanto, não é só pela crise e incerteza econômica que estão incertos. É que já se deram conta realmente da impermanência das coisas e, uma vez que essa geração vai buscar uma coerência interna-externa para ser feliz, já pressente que na medida em que a jornada da vida for trazendo as transformações dentro de si, eles precisarão reconstruir suas vidas exteriores para estar alinhados consigo e com a vida. Cá entre nós, o modelo de universidade que tempos já não serve mais. A ideia de formar para uma profissão, e para uma profissão só, está absolutamente obsoleta.
Na verdade essa nova geração está construindo espaços não escolarizados de saber, formação e economia solidária. Para atender a essa nova geração seria preciso mudar muito. O que não vamos conseguir fazer. A universidade seria nos moldes dos novos modelos que vem surgindo em ambientes não acadêmicos: espaço de vida e convívio (quem lava a louça do almoço hoje é você, professor?) destronando, na prática, toda forma de hierarquização que não cabe na cabeça dessa nova geração, estudos interdisciplinares (a matemática junto com a dança, com as constelações das estrelas, com as células do corpo humano e das plantas), participativos e lúdicos, ênfase na criação, muita arte e mística, muita sensibilidade, muita criação colaborativa, conexão com a natureza, conexão com a comunidade no entorno, etc.
De qualquer forma, vamos seguindo. Diante de desafios impossíveis ampliando a nossa escuta, de nossos estudantes e de nossas próprias impossibilidades. Creio que vamos ser melhores do que já fomos.
André Andrade Pereira
*esse texto foi originalmente publicado no blog do autor.