De volta de uma viagem de 12 dias à Europa (França e Suíça), apesar da correria do trabalho lá, deu para perceber um pouco como as coisas andam. E faço aqui algumas reflexões. Fazia 20 anos que não ia à Europa e muita coisa mudou.
Sim, o velho continente continua lindo, Paris magnífica, o interior da França aconchegante, a Suíça bela e organizada. A qualidade das estradas, da comida, o grau da civilização – tudo continua intacto. Afinal são milênios de história, séculos de conquistas civilizatórias. Mas mesmo em meio a isso, dá para se notar as mudanças desses inícios do século XXI. Ondas migratórias maciças – acho que nunca vi tantos imigrantes por lá (orientais, africanos, oriundos da América Central), a maioria deles, vindos de ex-colônias francesas e muitos já franceses, porque lá nasceram e já tem a cidadania europeia.
Esse aspecto, considero bastante significativo, porque os europeus são obrigados a aceitar uma multidão de gente de outros continentes, que eles antes invadiram, dominaram e exploraram. Por outro lado, são esses imigrantes que fazem o trabalho mais desqualificado socialmente.
Vi, por exemplo, uma cena que me chocou num ônibus de Paris: uma velhinha em estado triste – mal se aguentava em pé e parecia com Alzheimer avançado – mas toda arrumadinha, de chapéu, laçarote, maquiada. E quem a estava amparando, cuidando dela com todo esmero: uma jovem negra. O incrível é que tinha um mês antes observado num hospital, em São Paulo, cena em tudo semelhante. Um senhor bastante depauperado e de alta classe social, sendo acompanhado e cuidado por uma jovem também afrodescendente. Ou seja, em ambos os continentes, ainda os negros servindo os brancos… Raramente ou talvez nunca se veja nesse hospital do Brasil (um dos melhores de São Paulo) um afrodescendente como paciente…
Então os abismos continuam, apesar da militância de muitos, do clamor de outros, das leis que pretendem ser igualitárias. Mas há séculos de escravidão e preconceito, dominação e apartheid a serem vencidos e definitivamente superados.
Outra coisa que me chamou atenção foi o aumento da pobreza, de indigentes e mendigos nas ruas. 30 anos atrás, não se via ninguém pedir dinheiro em nenhum país do chamado primeiro mundo. A agenda neoliberal está ativa em toda parte: precarização do trabalho, cortes ou abolição dos benefícios sociais, avanço do chamado Estado mínimo – que só é mínimo para promover o bem-estar social, mas é enorme e gordo na repressão, pois em todo lugar se vê a polícia armada até os dentes e até para entrar em museu, há revista para os visitantes. Diminui-se o amparo social, porque supostamente o Estado está em déficit para atender às demandas da previdência, da saúde, da educação, mas para armas, policiamento, repressão… há dinheiro abundante. Porque é preciso conter a população insatisfeita e não deixar que ela se levante. Esse vídeo (abaixo) da televisão alemã é uma paródia bem didática sobre a relação entre a economia liberal e a precarização das relações de trabalho e bem-estar social.
Enquanto eu estava lá, houve a greve dos caminhoneiros aqui no Brasil e lá na França também houve greve dos ferroviários e greve geral, contra as reformas que Macron está propondo – reformas na mesma linha das reformas feitas no Brasil. É a mesma agenda em todo lugar do planeta, executada pelos políticos-marionetes das grandes corporações, dos bancos, do complexo bélico…
E o povo? Ainda como um resto da educação para a cidadania, feita nos últimos 200 anos, os franceses e também os imigrantes e seus filhos em sua maioria, ainda têm consciência política – embora se sintam tão impotentes quanto nós, diante dos atropelos do capitalismo selvagem das últimas décadas. Mas já reclamam dos mais jovens, como reclamamos nós aqui, que andam inconscientes e manipulados pela mídia e apoiando ideias radicais de direita.
E finalmente conversei com inúmeros franceses, árabes, africanos e seus descendentes e todos por lá são unânimes na visão que têm do Brasil: aqui, houve um golpe, a prisão de Lula é política, estamos a caminho ou já numa ditadura… Na prefeitura de Paris, abaixo do lema da Revolução Francesa, está o retrato de Marielle (foto acima). Então, se a globalização nos coloca a todos nesse mesmo barco de empobrecimento coletivo, aumento das distâncias sociais, e escravização no trabalho, também nos remete à possibilidade de lutarmos e resistirmos juntos, através de uma nova consciência e de ações horizontais, para mudar esse quadro que nos angustia.