Para fazer revoluções – na escola e no mundo, o que é preciso?

Há uma série sobre e para adolescentes, disponível na Netflix, produzida na Espanha, mais especificamente na Catalunia, falada aliás em catalan, idioma interessantíssimo, com rica literatura e que se assemelha bastante ao português. Merlí é o título e o nome do personagem central, um professor de filosofia que vai dar aulas numa escola pública e mexe com alunos e professores, pais e mães de alunos – com suas atitudes libertárias, intempestivas e com seu envolvimento afetivo com os adolescentes.

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Essa série me fez lembrar o antológico filme A sociedade dos poetas mortos, com Robin Williams, embora nesse filme, a escola é muito mais repressiva, a matéria é Literatura e não Filosofia e a história acaba em tragédia, com o suicídio de um aluno.

Há que se dizer, em primeiro lugar, que a série trata de ideias e filósofos em conexão com problemas concretos do cotidiano – que é como Merlí vai apresentando e discutindo os pensadores antigos e contemporâneos. A trilha sonora com música clássica faz um pano de fundo interessante com a contemporaneidade das situações e atuações dos jovens alunos. Já dessa perspectiva, é uma série que acrescenta cultura e informação, além de provocar reflexão – é mil vezes melhor do que a superficialidade pobre da Globo.

Mas o que nos interessa analisar aqui é um dilema bem sutil que também se encontra presente em A sociedade dos poetas mortos.

Está claro – e é o que sempre afirmamos e pelo que militamos o tempo todo – que a escola tradicional, com suas carteiras enfileiradas, com suas verdades fechadas e impostas, com o distanciamento afetivo entre professores e alunos, com sua padronização curricular desinteressante para as crianças e adolescentes é um sistema que provoca infelicidade tanto nos docentes quanto nos alunos; que afasta, ao invés de atrair, do conhecimento e de sua busca; que reforça o tédio, o desinteresse e a apatia.

Mudar esse modelo para escolas abertas, participativas, baseadas em projetos e debates e não em matérias engessadas, para escolas em que todos – professores e alunos – sejam vistos em seus talentos, em seus afetos e suas dificuldades e aceitos em suas diferenças, é o que mais desejam as mentes progressistas, que compreendem que o modelo vigente é castrador, desestimulante e empobrecedor. Há inúmeras experiências nos últimos 200 anos que apresentaram outras e bem-sucedidas formas de educação. Mas em nenhum lugar do mundo, escolas livres, abertas, alternativas se estabeleceram como majoritárias. Continuam como experiências isoladas. Há uma enorme, quase intransponível barreira para a mudança em massa da educação no planeta – todos os poderes constituídos (desde o pátrio poder aos poderes econômicos e políticos locais e internacionais) fazem resistência implícita ou explícita a tais mudanças.

Há resistência de interesses e de mentalidades. Não interessa a formação de novas gerações pensantes e críticas. Não cabe nas mentalidades, que se comprazem na opressão e na repressão, a emancipação do ser humano.

Diferente de uma situação de escolas declaradamente alternativas em que os professores ali envolvidos partilham de uma mesma proposta, porém, é a entrada de um professor libertário numa escola convencional, como o Instituto em que Merlí vai dar aulas ou numa escola extremamente rígida, como aquela em que vai atuar John Keating, o personagem de Robin Williams. Eu mesma já me vi diversas vezes diante desse desafio, tanto em escolas públicas, quanto em escolas particulares.

Ora, a presença, as ideias, a atuação desses professores provoca mudanças, revoltas, críticas, oposições dos que estão acomodados no sistema – mas ao mesmo tempo ganha sempre (e é essa minha experiência também) a adesão e o entusiasmo dos alunos.

Quando os estimulamos, os ouvimos, os acolhemos – eis que eles se abrem, se desenvolvem, produzem, desabrocham.

O dilema que se apresenta, sobretudo com adolescentes, é que fazer coisas que desafiam o sistema, quebrar regras, formar cabeças pensantes, pode de repente os colocar em risco – como acontece na série Merlí, em que o aluno mais reprimido entra em coma alcóolico ou como aquele que se suicida em A sociedade dos poetas mortos.

Quando deflagramos o espírito de rebeldia – necessário à desconstrução dos padrões conversadores e opressores – estamos lidando com forças inconscientes muito poderosas, que podem vir à tona de forma devastadora.

Lutero viveu isso na sociedade alemã de sua época. Ele deflagrou um processo de desobediência à Igreja católica que de repente se transformou em revolução violenta, fazendo com que ele mesmo recuasse, e com isso angariasse uma mancha histórica em sua biografia, e ter então aconselhado os príncipes alemães a reprimirem violentamente os camponeses rebelados.

Gandhi também se defrontou com isso e usou um jejum até quase a morte, para pacificar os ânimos da população.

Pestalozzi explicou isso na Revolução Francesa: há tanta repressão e opressão entre os povos que, quando explode a revolta, as coisas podem extrapolar de maneira absurda – como aliás se revelou o banho de sangue daquela mesma revolução.

Então, o que fazer?

Merlí quase se dá mal (e se não fosse pela benevolência do autor da série, poderia ter se dado), porque ao quebrar todas as regras – mas também ao agir com impulsividade, descontrole e em alguns casos, com falta de Ética – deflagra processos saudáveis alguns, perigosos outros, em seus alunos.

A meu ver há três aspectos que devem ser considerados em qualquer revolução (micro ou macro, de uma escola, de um ambiente de trabalho, de um país ou do mundo):

  • Não podemos perder de vista que do outro lado, o lado do poder, da repressão, do autoritarismo, do interesse, está um ser humano, igual a nós. Ter empatia com o outro, mesmo em campos opostos, ter compaixão pelas dificuldades do outro é essencial – porque o revolucionário ou o que critica o sistema também tem suas dificuldades, seus autoritarismos. E se não medir suas atitudes, pode se tornar um tirano também. Merlí acerta quando diz ao aluno que entrou em coma alcóolico que o pai o amava e queria o melhor dele, embora estivesse agindo de maneira opressora; mas erra no seu ódio e no seu desprezo ao professor Eugeni, o maior representante do conservadorismo na série. Gandhi sempre alertou para essa condição de respeito e empatia em sua luta com os ingleses.
  • A pessoa que quer promover mudanças que desafiam o sistema precisa estar comprometida com um comportamento ético, com uma seriedade de atitudes, para não desmerecer suas ideias libertárias, com atitudes libertinas. E aí, Merlí falha demais, porque também isso faz parte da filosofia excessivamente relativista do mundo contemporâneo. Tem um comportamento sexual desenfreado, faz sexo dentro da escola, rouba uma prova, falsifica, estimula o adultério, etc. Como se quebrar regras conservadoras e opressoras lhe desse o direito de não respeitar mais nada. Não que ele não tome atitudes de defesa de princípios em algumas situações. Mas em outras tantas, ele passa por cima mesmo de pessoas e princípios.
  • Particularmente considero que para nos ancorarmos em paciência para as mudanças, empatia com os opositores, princípios que nos garantam uma postura ética plena, há que se considerar o espiritual como algo necessário para um mundo melhor. Senão tudo fica muito ressecado, muito animalesco, muito rude, muito sem transcendência – e aí um passo para a autodestruição e o suicídio é muito curto. Sentido pleno e força serena só mesmo com uma visão espiritual, seja ela qual for – claro que não seja dogmática, fanática e opressora. E é evidente também que uma religião nem sempre garante a ética de seus praticantes.

A necessidade da espiritualidade fica clara para mim nas duas situações que estamos analisando, na série Merlí e no filme A sociedade dos poetas mortos: só a filosofia não salva; só a literatura não salva; só uma chacoalhada no sistema opressor não salva! É preciso que nos ancoremos em um profundo amor à humanidade (um amor que não exclua ninguém, nem mesmo aquele que promove a opressão) e esse amor só foi exemplificado e proposto pelas grandes figuras espirituais de todas as épocas da história humana.

2 respostas para ‘Para fazer revoluções – na escola e no mundo, o que é preciso?

  1. Também sou professora e meu filme favorito é A Sociedade dos Poetas Mortos e assisti à 1a temporada de Merlì. Como Merlì atua como um revolucionário, mas, assim como eu, esquece do que você pontuou muito bem: somos todos errados. Não é porque temos pensamentos revolucionários e queiramos sempre o melhor para os nossos alunos que devemos nos distanciar da proposta da escola. Onde fica o diálogo aí? Acho que pra mais escolas se tornarem libertárias como a Escola da Ponte, por exemplo, precisamos enquanto docentes lutar ao lado dos que ainda não abriram seus olhos. Eu mesma já fui extremamente preconceituosa com tantas coisas… logo devo ajudar minha escola a vencer os seus em seu tempo para ir de encontro às necessidades da comunidade escolar. Obrigada pelo texto incrível!

    Curtido por 1 pessoa

    1. Faz sentido, lutar ao lado dos outros. Mas era preferível se tentasse criar um projeto diferente e alertar os outros. Só com a prática é que se demonstra a teoria.

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