Ausência e violência como ato de amor.

O comportamento agressivo de uma criança é reflexo de um contexto, e não a manifestação de uma maldade inata. Já falei aqui sobre como na infância, a mentira é uma habilidade linguística importante, e não um desvio de caráter, ou como perdemos a noção da diferença entre respeito e medo. Mas ainda existe uma enxurrada de pessoas que defende a palmada como um instrumento “pedagógico”. O vídeo abaixo é um resumo de todo o nosso fracasso como adultos diante da tarefa de educar crianças:

O vídeo mostra uma reportagem sobre um programa norte americano de combate e prevenção ao crime, que leva crianças que cometeram delitos repetidamente, para dento de um presídio. Elas vestem o uniforme de presidiário, são conduzidas de maneira bastante agressiva pelos policiais, são colocadas em celas com adultos condenados, são maltratadas, xingadas e humilhadas. A ideia é mostrar para elas o que acontece com quem comete crimes, e por fim todas respondem que não querem isso para seu futuro, entre o engolir de lágrimas e o pânico.

Os pais que inscreveram seus filhos no programa não veem outra solução a não ser entregar os filhos para que outras pessoas os corrijam a qualquer custo. Os policiais e os presidiários que são responsáveis por mostrar para as crianças a dura realidade não se intimidam com a presença das câmeras de TV e se empenham na rudeza e no terror. A juíza que defende o programa de prevenção ao crime não se abala com as imagens da reportagem e afirma que “aquelas” crianças não têm jeito e que essa ação é uma forma de amor.

Ninguém perguntou por que as crianças haviam cometido os delitos, qual era a relação delas com os pais, a que pressões sociais e econômicas a família dessa criança está submetida,  quais as frustrações e expectativas que a família deposita nessa criança. Nada. Nenhuma dessas coisas interessa, já que as respostas a essas perguntas nos aproximariam demais da realidade daquela família, daquela criança, e então elas não seriam mais meros rótulos, elas passariam a seres humanos como nós, cheios de falhas.

A capacidade de amar e de construir relações empáticas depende do grau de exposição que tivermos a essas coisas. Se não fomos amados, ou se o amor que nos foi dirigido era cheio de  pequenas violências, chantagens, culpas e mágoas, nós vamos crescer entendendo que isso que recebemos é bom, já que é o que nossos pais nos deram, e vamos reproduzir. Se ninguém fizer uma autocrítica em algum momento, isso vai se perpetuando de geração em geração. E, hoje, mais do que nunca na história do mundo, nós podemos fazer essa autocrítica. Temos todas as ferramentas para isso e a liberdade para fazê-lo.

Já falei aqui sobre a relação entre a palmada e a pena de morte. As chacinas em presídio que testemunhamos recentemente são outro aspecto do mesmo problema. Quando defendemos que “esse tipo de gente não merece toda essa comoção”, ou que “deixem que morram”, “tinha que ter uma chacina dessas por semana para acabar com o crime organizado”, etc, estamos colocando para fora o mesmo que os policiais, os presidiários e a juíza do vídeo colocaram. Estamos afirmando o abandono e a violência que sofremos e que nos constituíram. Diante da sociedade, achamos que isso é justiça. Diante  das crianças, achamos que isso é amor.

NOTA – Um depoimento profundamente humano, que está no filme HUMAN do cineasta Yann Arthus-Bertrand, serve de contraponto ao video anterior. A revolução que o perdão a empatia e a presença podem fazer vão muito além de qualquer programa de prevenção.  Amar verdadeiramente é a nosso maior instrumento de transformação .

Mauricio Zanolini

 

Uma resposta para “Ausência e violência como ato de amor.

  1. Sem condições de fazer qualquer comentário, diante desse texto e desses vídeos. Acredito que preciso rever alguns conceitos muito distorcidos sobre amor, perdão e punição.

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