A lucidez de Martin Luther King em 1967

unnamed (1)Em 1967, o ativista pelos direitos civis, Dr. Martin Luther King Jr., e o seu movimento pautado na resistência pacífica frente à brutalidade policial, e na desobediência civil frente às leis segregacionistas, que impunham aos negros uma cidadania de segunda classe, já acumulava vitórias. O Ato pelos Direitos Civis, de 1964, e o Ato pelo Direito a Voto de 1965, aprovados nas casas legislativas de Washington, punham um fim à herança escravagista que impregnava o código legal dos Estados Unidos. Naquele momento, King se perguntava – para onde vamos a partir daqui?

Em abril de 1967, ele publica um livro com esse título – Para onde vamos a partir daqui: Caos ou Comunidade? – para falar da esperança. Faz críticas ao desperdício imoral de vidas e de recursos econômicos que resultavam da Guerra do Vietnã, e aponta a incongruência dos movimentos separatistas de negros que pegavam em armas contra os brancos nos EUA. Também mostra a visão fantasiosa de que os brancos, que apoiaram a mudança da legislação dos direitos civis, tinham a respeito das condições de vida dos negros imediatamente após a aprovação de tais leis. A vitória não significava o fim da luta, mas o começo de uma nova luta, para que as ideias que inspiraram a nova legislação passassem a fazer parte da cultura norte americana.

Em agosto de 1967, poucos meses antes de ser assassinado, King faz um discurso na 11ª convenção anual da Southern Christian Leadership Conference, em Atlanta, Georgia. O tema de sua fala é – Para onde vamos a partir daqui? – inspirado no livro. A primeira metade do discurso fala diretamente aos membros da Southern Christian Leadership, enumerando os avanços e as conquistas das ações do grupo. Na segunda metade, Martin Luther King fala da importância da não violência, do futuro do trabalho, sobre a essência da moral cristã, das ideologias, e do futuro promissor que ele enxergava para a humanidade.

O vídeo abaixo é a gravação do áudio desse discurso. Mesmo sem boas legendas, a força das palavras de King e a forma como ele transforma sua análise da conjuntura em pregação de amor e esperança, calam fundo. A segunda parte do discurso começa a partir do minuto 38 do vídeo.

Eu traduzi essa segunda parte do discurso e na sequência destaco alguns trechos que julguei mais importantes:

1 – Sobre a necessidade de uma renda mínima universal para todas os trabalhadores viverem com dignidade, sem ficarem reféns do mercado:

Devemos desenvolver um programa que conduzirá a nação a garantir uma renda anual. No início do século, essa proposta teria sido ridicularizada e seria denunciada como destruidora da iniciativa e da responsabilidade. Naquele momento o padrão econômico era definido pela medida das habilidades e talentos do indivíduo. E no pensamento de então a ausência de bens mundanos indicava a falta de vontade de trabalhar e a falta de fibra moral. Percorremos um longo caminho na nossa compreensão sobre a motivação humana e a cegueira do nosso sistema econômico. Agora sabemos que a desorganização do comércio na nossa economia e a prevalência da discriminação empurram as pessoas para a ociosidade e as vincula ao constante ou frequente desemprego contra sua vontade. Eu espero que hoje os pobres sejam menos escanteados de nossa consciência por serem rotulados como inferiores e incompetentes. Também sabemos que não importa quão dinâmico é o desenvolvimento e a expansão da nossa economia, isso não elimina a pobreza.

2 – Sobre a não-violência como a única forma possível de combate ao preconceito e ao ódio:

E quando questionamos os defensores da violência, sobre quais ações que seriam
eficazes, as respostas são cinicamente ilógicas. Algumas vezes falam em derrubar o
estado racista e governos locais e falam sobre táticas de guerrilha. Eles não
conseguem ver que nenhuma revolução interna conseguiu derrubar um governo pela violência, a menos que o governo já tenha perdido a lealdade e o controle efetivo de suas forças armadas. Qualquer pessoa lúcida sabe que isso não acontecerá nos Estados Unidos. Numa situação racial de violência, a estrutura de poder tem a polícia local, as tropas estaduais, a guarda nacional e o exército para convocar, todos
predominantemente brancos. (…) Então eu vos digo que eu me mantenho ao lado da não-violência. E ainda estou convencido de que é a arma mais potente disponível para o negro e sua luta por justiça nesse país. A outra coisa é que estou interessado num mundo melhor. Estou interessado na justiça; estou interessado na irmandade; estou interessado na verdade. E quando alguém quer essas coisas, não pode nunca defender a violência, porque pela violência você pode matar um assassino, mas você não pode matar o assassinato. Pela violência você pode matar o mentiroso, mas não pode estabelecer a verdade. Pela violência você pode matar aquele que odeia, mas não pode matar o ódio. A escuridão não pode dar cabo da escuridão; apenas a luz pode fazer isso. (…) Eu já vi muito ódio nos rostos de xerifes no sul. Eu vi o ódio nos rostos de muitos membros da KKK e de muitos cidadãos brancos no sul para querer eu mesmo odiar. Porque cada vez que eu vejo eu sei que o ódio muda seus rostos e suas personalidades, e eu digo a mim mesmo que o ódio é um fardo muito grande para suportar. Eu decidi amar. Se você está buscando o bem maior, acho que pode encontrá-lo através do amor. E a beleza disso é que não estamos errando quando fazemos isso, porque João estava certo, Deus é amor. Quem odeia não conhece a Deus, mas quem ama tem a chave que destranca a porta para o significado da realidade última.

3 – Sobre a verdadeira moral cristã:

Então eu vos digo meus amigos, que você pode falar com a língua dos homens e a
língua dos anjos, você pode ter a eloquência do discurso, mas se não tiver amor, isso
não significa nada. Você pode ter o dom da profecia; você pode ter o dom da
previsão científica e entender o comportamento das moléculas; pode invadir o
armazém da natureza e trazer de lá muitas ideias; você pode atingir o ápice do
sucesso acadêmico e ter todo o conhecimento; você pode se orgulhar de suas
grandes instituições de ensino e da extensão ilimitadas de seus diplomas, mas se não
existe amor, tudo isso não significa absolutamente nada. Você pode até dar os seus
bens para alimentar os pobres; você pode dar coisas ótimas para a caridade; e pode
ser o mais destacado filantropo, mas se não tiver amor, sua caridade não significa
nada. Você pode até dar seu corpo para ser queimado e morrer como um mártir, e
seu sangue derramado pode ser um símbolo de honra para gerações ainda não
nascidas, e milhares podem elogiá-lo como um dos maiores da história, mas se não
tiver amor, seu sangue terá sido derramado em vão. O que eu quero que vocês
vejam aqui é que um homem pode ser egocêntrico em sua abnegação e hipócrita em
seu auto sacrifício. Sua generosidade pode alimentar o seu ego, e sua piedade pode
alimentar seu orgulho. Então sem amor a benevolência se torna egoísmo, e o
martírio se torna orgulho espiritual.

4 – Sobre a oposição entre comunismo e capitalismo:

Mas não pensem que eu esteja vinculando isso a determinadas ideias. Não estou
falando de comunismo. O que eu estou dizendo vai além do comunismo. Minha
inspiração não vem de Karl Marx; minha inspiração não vem de Engels; minha
inspiração não vem de Trotsky; minha inspiração não vem de Lenin. Sim, eu li o
Manifesto do Partido Comunista e O Capital há muito tempo atrás. E eu vi que talvez
Marx não tenha seguido Hegel o suficiente. Ele pegou a dialética, mas deixou de fora
o idealismo e o espiritualismo. E ele se debruçou sobre o filosofo Feuerbach, pegou
dele o materialismo e transformou num sistema que chamou de materialismo
dialético. Eu tenho que rejeitar essa ideia.
O que eu estou dizendo para vocês nessa manhã é que o comunismo esquece que a
vida é individual. E o capitalismo esquece que a vida é social. E o reino de
fraternidade tem sua fundação não na tese do comunismo nem na antítese do
capitalismo, mas numa síntese mais elevada. É fundado numa síntese mais elevada
que combina a verdade dos dois sistemas. Então quando eu questiono a sociedade
como um todo, isso nos leva a ver que o problema do racismo, o problema da
exploração econômica e o problema da guerra estão entrelaçados. São o mal triplo
que é interconectado.

5 – E finalmente a esperança no futuro e a confiança na humanidade que sempre embasaram suas ideias e ações:

Que possamos compreender que o arco da moral universal é longo, mas se curva na
direção da justiça. Que possamos compreender que William Cullen Bryant está
correto: “A verdade, quando esmagada contra a terra, se reerguerá.” Sigamos
cientes de que a Bíblia está correta: “Não vos enganeis. Deus não se permite zombar.
Portanto, tudo que o homem semear, isso também colherá.” Essa é nossa esperança
no futuro, e com essa fé nós poderemos dizer em um não tão distante futuro,
flexionando o verbo no passado: “Nós triunfamos! Nós triunfamos! Do fundo do meu
coração eu acreditei que triunfaríamos!”

Que possamos nos inspirar na lucidez dessas palavras quando vivemos um contexto tão difícil e transformador quanto este em que estamos vivendo hoje!

3 respostas para ‘A lucidez de Martin Luther King em 1967

  1. Pingback: A lucidez de Martin Luther King em 1967 – Portal da Casa Espírita Nova Era – Blumenau – Santa Catarina – SC
  2. É profundamente lamentável que muitas pessoas que se dizem cristãs ainda abrigam, de alguma forma, ideias racistas. A mensagem e os exemplos Jesus ainda não são convenientemente estudados e meditados no silêncio dos templos, onde se efetuam, não raro, apenas rituais e orações repetidas inconscientemente.

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