Fyre Festival – um curso rápido de capitalismo

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Um jovem de Nova York, considerado pela imprensa como um visionário que sabe dialogar e engajar os millenials (geração nascida depois do ano 2001), anuncia seu novo projeto – um festival de música numa ilha privada do Caribe, com direito a jatos particulares, iates, chefes de cozinha e hospedagem de luxo, celebridades e influenciadores digitais. Como o Fyre Festival – experiência mais exclusiva, luxuosa e memorável que o dinheiro poderia proporcionar – virou motivo de piada, vergonha, brigas judiciais e prejuízos? Seguindo a cartilha do empreendedorismo!

Billy McFarland ficou famoso ao criar um cartão de crédito de luxo voltado para o público jovem, que dava a seus usuários vantagens como descontos em eventos, acesso a festas e um clube só para membros. O modelo de negócio é baseado em oferecer a sensação de pertencimento a um grupo seleto, diferenciado, com acesso a experiências acima das vividas pela massa. No caso do festival no Caribe, a lógica era a mesma.

O empreendedor contratou uma agência de marketing, uma equipe de filmagem, modelos com milhares de seguidores nas redes sociais e um artista (o rapper Ja Rule), voou para uma ilha que ele dizia ter comprado da família de Pablo Escobar. Criou vídeos e fotos que vendiam luxo, ostentação e diversão. Vendeu quase todos os pacotes (que custavam entre US$ 1.500,00 a US$ 25.000,00) em menos de 24 horas.

 

Como a ilha da família Escobar (que não havia recebido o pagamento de McFarland) não tinha nenhuma infraestrutura e não comportava o número de pessoas que haviam comprado os ingressos, foi preciso encontrar uma outra localização nas Bahamas (a ilha Exuma). A chegada de um evento dessas proporções na ilha alterou completamente a lógica econômica do lugar. A população local se animou com as promessas de trabalho para atender as necessidades das 8.000 pessoas que visitariam a ilha durante o festival.

Por mais que diversas pessoas da equipe tenham verbalizado suas objeções em relação a continuar com a montagem do festival, porque estava claro que não seria possível entregar o que fôra prometido (não era possível construir as acomodações, por exemplo), McFarland não cedia. Dentro da mentalidade empreendedora, a postura da equipe deveria ser pró-ativa, focada na solução dos problemas e não em listar as dificuldades e impossibilidades. Como fica claro no documentário da Netflix sobre o Fyre Festival, para entregar o produto para o cliente vale tudo – mentir, passar por cima de quem quer que seja, se prostituir (literalmente).

Quando as primeiras pessoas desceram do avião para curtir o festival foram recepcionadas por um improviso caótico, sem água, sem comida, sem hospedagem (e sem música, já que todas as atrações cancelaram a participação horas antes). O empreendedor foi acionado judicialmente, pagou fiança e voltou para o porão da casa de seus pais. A justiça foi feita! Bem, na verdade não…

Poucos meses depois, ele estava morando em um hotel em Manhattan, usando os e-mails das pessoas que compraram os ingressos do Fyre Festival para vender pacotes para outros eventos exclusivos, luxuosos e memoráveis. Dessa vez não havia nem uma tentativa de legitimidade, era puro golpe. Atualmente ele está preso (6 anos, mas com possibilidade de redução de pena), e as pessoas que trabalharam com ele acreditam que essa experiência será importante para, no futuro, ele usar sua genialidade e sua veia empreendedora para fazer negócios incríveis, inovadores, disruptivos. Provavelmente ele vai dar palestras sobre o que aprendeu com o fracasso e seu tempo na prisão para plateias ávidas por fórmulas de pró-atividade, pensamento positivo e histórias de superação.

Não há nenhuma diferença essencial entre esse capitalismo do século XXI do empreendedorismo de palco e a corte francesa do século XVIII que achava que se o povo não tinha pão, que comesse brioches. A ilusão de pertencer a um grupo exclusivo e glamuroso que causou prejuízo para as milhares de pessoas que compraram os ingressos do festival é muito diferente da motivação que causou prejuízo para centenas de trabalhadores, habitantes da ilha de Exuma, que abandonaram suas ocupações para conseguir um dinheiro extra na montagem de uma infraestrutura e no atendimento, recepção e serviços, e que nunca receberam o pagamento pelo seu trabalho.

Num mundo em que os Estados (e os diversos níveis de democracia que os legitimam) têm pouca efetividade, já que os oligopólios globais (capitaneados pelos bancos no topo dessa pirâmide) determinam a governança desses países, as ações empreendedoras como a que desenhou o Fyre Festival, trabalham na mesma lógica. Passam por cima de leis, deixam para traz prejuízos, arruinam vidas e seguem em frente sem olhar para trás, sempre buscando a próxima mídia espontânea, a próxima viralização do teaser do vídeo promocional da experiência mais exclusiva e memorável que o dinheiro pode pagar.

2 respostas para ‘Fyre Festival – um curso rápido de capitalismo

  1. São especialistas na venda de “apenas” sensações, resultantes de sofisticadas construções midiáticas, em tempos em que o virtual por vezes consegue anestesiar nosso olhar atento e crítico.

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  2. Ao invés de se irmanar a todos que são vítimas do capital, a fórmula cultural é buscar saídas alucinadas, como a mística do pensamento positivo, para tentar saltar para o “mágico” mundo dos “escolhidos” e “merecedores”… De fato é uma história bem sintomática.

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