Tradições subvertidas –  sobre o diálogo entre marxismo e religiões

marx-jesus2O aspecto mais tradicional da crítica filosófica às religiões é aquele que afirma que somente existe o mundo material, e que não há evidências da existência de qualquer realidade transcendente proclamada pelas tradições religiosas ao longo da história. Entretanto, é possível especular que mesmo o que chamamos de realidade material é algo bastante limitado, e, de fato, essa realidade pode ser muito mais ampla e complexa do que imaginamos. Centenas de anos atrás, por exemplo, a existência de microorganismos ou de certas partículas invisíveis a olho nu seria apenas uma especulação.

Há, entretanto, um outro sentido de relação entre matéria e espírito expressa na tradição teórica marxista, que é a relação entre a produção material da vida e o espírito da humanidade – no sentido de cultura, ideias, abstrações. Como ocorre a dialética entre matéria e espírito,  qual o grau de determinação entre esses dois aspectos da realidade, são questões que vêm sendo debatidas pela tradição marxista desde as obras propriamente de Marx, que, por sua vez, inspirou-se e avançou além da crítica à religião de Feuerbach, referência entre os jovens hegelianos.

Segundo Ivo Lespaubin, em seu artigo sobre Marxismo e Religião, Marx , no início de suas obras, trabalha religião como alienação, a expressão do “suspiro da criatura oprimida” que procura no mundo espiritual o que lhe falta no mundo real. Em uma segunda fase, trata a religião como ideologia, como reflexo ilusório da dominação de classe, exprimindo, justificando e escondendo a realidade dessa dominação. Nessas perspectivas, a religião não tem substância própria, desaparecendo conforme a sociedade satisfaz as necessidades concretas dos indivíduos.

Ao analisar as religiões de um ponto de vista histórico, por outro lado, Engels irá sublinhar a semelhança entre os primeiros cristãos e os socialistas. O cristianismo primitivo de fato exerceu notável atração em outros autores marxistas, como Kautsky, Rosa Luxemburgo e Gramsci. No caso dos dois últimos, observa-se que tais autores passam a questionar menos a essência da religião, e mais o papel histórico desempenhado por ela frente aos sonhos e atos de transformação social.

Rosa Luxemburgo defendeu a liberdade de consciência dos religiosos, criticando especificamente os sacerdotes que usam o púlpito “como meio de luta política contra a classe operária”, e afirmou que estes contrariavam os ensinamentos originários do cristianismo, de promoção da felicidade terrena dos mais humildes. Avançando teoricamente, Gramsci afirma que toda religião “é na realidade uma multiplicidade de religiões distintas e muitas vezes contraditórias”. No caso do catolicismo, Gramsci observa, à sua época, que  “há um catolicismo dos camponeses, um catolicismo dos pequeno-burgueses e dos operários das cidades, um catolicismo das mulheres e um catolicismo dos intelectuais, este encoberto e incoerente” (GRAMSCI, 1978, p.144).

Um elemento histórico de suma importância destacado por Gramsci é que a Igreja – e, estendemos, as demais religiões – não é mais, na modernidade, a força ideológica hegemônica da sociedade. As religiões fazem parte da sociedade e sofrem a força de ideologias exteriores. No mesmo sentido, Michelle Bertrand afirma que as religiões são atingidas, teoricamente e na prática, pela luta de classes, podendo assumir um papel revolucionário ou conservador, e até mesmo simultaneamente ambos papeis.

Foram realidades históricas como o combate de militantes cristãos aliados a comunistas na resistência ao fascismo e ao nazismo, e o engajamento de um setor significativo das igrejas, sobretudo na América Latina, ao lado dos mais pobres e oprimidos, que fertilizaram transformações práticas e teóricas nas relações entre a tradição marxista e as religiões, embora ainda exista a posição mais tradicional de absoluta rejeição às religiões no meio marxista.

Nenhum autor marxista nega o fenômeno histórico que as religiões já desempenharam e ainda desempenham, na maioria dos casos, o papel de ideologia de manutenção do status quo, porém a análise marxista já foi além disso. Inspirado no cristianismo revolucionário e na teologia da libertação latino americana, Michael Löwy, por exemplo – no livro A guerra dos deuses – religião e política na América Latina – destaca a lembrança de Ernest Bloch do submundo das religiões heréticas do Albigenses, dos Hussitas, de Joaquim de Fiori, Tomás Münzer, Franz von Baader, Wilhelm Weitling e Tolstoi. Para Bloch, a religião dos hereges é uma forma significativa de consciência utópica e do princípio de esperança.

Os exemplos históricos na Nicarágua, em El Salvador e no Brasil também são, para Löwy, a  evidência de que a fé (ele refere-se especificamente à fé cristã) pode, em certos contextos históricos, ser fonte de engajamento na luta das classes populares pela libertação. Lespaubin relembra que o Partido Comunista Catalão declarava, em Setembro de 1976, que “o preexistente elo metafísico do comunismo com o ateísmo, predominante até hoje no comunismo internacional, supôs uma redução do horizonte político-ideológico do marxismo” (citado por Dussel, 1977).

Lowy relembra também as comparações de Lucien Goldmann entre a fé religiosa e a fé marxista: ambas recusam ao individualismo puro (racionalista ou empirista) e afirmam a crença, a aposta nos valores transindividuais: “Deus pela religião, a comunidade humana pelo socialismo”.

Estudando as reflexões de Ivo Lespaubin, na condição de espiritualista, relembro que as religiões, com suas metafísicas que negam a morte como o fim *, conferem sentido e um senso de perenidade aos trabalhos e vínculos empreendidos na vida terrena, tendo um valor psicológico inegável, a despeito das controvérsias sobre a realidade essencial do que afirmam. Por outro lado, convém reafirmar que, assim como os profetas do oriente médio (zoroastrismo, judaísmo, cristianismo, islamismo) influenciaram a transformação das religiões mágicas, ritualísticas e focadas em tabus  da antiguidade em outras com maior ênfase ética, como relembra Weber, a luta coletiva pela concretização política dos princípios éticos mais universais, democráticos e socialmente justos tem amplo potencial para ser incorporada pela ética, pela prática e pela mística das tradições religiosas contemporâneas. O campo religioso é transpassado pela disputa de classes, e é um importante campo a se considerar, como a atual aliança entre o projeto conservador de lideranças evangélicas e de austeridade nas políticas sociais da elite política e econômica do nosso país evidencia.

 

*Algumas religiões não enfocam a vida após a morte, mas somente um caminho de aperfeiçoamento para a vida terrena, como o budismo, por exemplo.

 

Referências:

Dussel, Henrique. Religion: como supraestrutura y como infraestrutura. México, Edico, 1977

Gramsci, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.

Lespaubin, Ivo. Marxismo e Religião. In: Teixeira, Faustino (Org.). Sociologia da Religião. Enfoques teóricos. 4ª ed. Petrólpolis, RJ: Vozes, 2011

Luxemburgo, Rosa. Igreja e Socialismo. In: Assman, H. & MATE, R. (Orgs.) Sobre la religion II. Jaurés, Lenin, Gramsci y otros. Salamanca: Sígueme, 1975

Maris, Cecília Loreto. A Sociologia da religião de Marx Weber. In: Teixeira, Faustino (Org.). Sociologia da Religião. Enfoques teóricos. 4ª ed. Petrólpolis, RJ: Vozes, 201

 

3 respostas para ‘Tradições subvertidas –  sobre o diálogo entre marxismo e religiões

  1. Parabéns pelo conteúdo. Afinal, a Mensagem de Nosso Senhor Jesus Cristo tem conteúdo socialista, o “Socialismo da Mensagem do Cristo”. No entanto, regime político nenhum, dos que atualmente existem na Terra, se aproxima da mensagem do Cristo. O que significa que os regimes e militarismos transitórios e necessários passarão, mas a Mensagem do Cristo permanecerá, e então na Terra haverá apenas uma Nação, um Regime e um Mestre.

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  2. Pingback: Espiritismo como limite ou como ponte? | Blog da ABPE

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