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O problema do homo economicus individualista, segundo Lynn Stout.

Hoje a organização corporativa mais antiga ainda em atividade é a Veneranda Fabbrica del Duomo di Milano, fundada em 1387 pelo governador da cidade para supervisionar a construção da Catedral de Milão.  A construção de uma obra dessa magnitude se deu ao longo de várias gerações de profissionais que dedicaram suas habilidades e suas vidas para completar a tarefa. Entre pausas e recomeços a obra levou mais de 400 anos para ficar pronta. A Fabbrica ao longo dos séculos foi responsável paralelamente por outros projetos arquitetônicos na cidade como a fachada do Palazzo Marino e hoje faz a manutenção e a preservação desse patrimônio histórico.

Para a professora de direito Lynn Stout, o desenho essencial das organizações corporativas é exatamente essa da Fabbrica, com suas duas características principais. A primeira é que a corporação é considerada um ente (pessoa jurídica), e portanto é protegida por leis (direitos) que permitem que ela possua e administre bens que não pertencem a nenhum indivíduo. A segunda característica é que ela sobrevive além do tempo de vida daqueles que a fundaram, é virtualmente perpétua, e por isso tem seus objetivos apontados para o futuro, para as próximas gerações.

Segundo Lynn, se olharmos para o mundo corporativo hoje vamos ver algo muito distante desse modelo. A prática de maximizar o lucro dos acionistas (que financiam a corporação) é o que orienta a tomada de decisão nas reuniões de diretoria das corporações, é o que monopoliza os currículos das universidades e as publicações especializadas em administração e legislação da pessoa jurídica. Esse paradigma que hoje é dominante se baseia num conceito de homo econimicus, um modelo idealizado de ser humano e suas trocas econômicas, que ao longo da história do pensamento vem oscilando entre individualista e cooperativista, autônomo e dependente do meio (e dos outros), egoísta e altruísta.

Na economia, assim como pedagogia, o que determina as ações práticas é esse conceito de homem (punição e competição para um paradigma de ser humano essencialmente egoísta, ou estímulo à curiosidade e à cooperação para um ser humano essencialmente  altruísta). Em ambas (economia e pedagogia) o modelo de ser humano mais influente hoje é o egoísta, individualista. O homo econimicus idealizado é hoje o ser racional,  informado e capaz de tomar decisões clara e objetivas, centrado em si próprio, que deseja riqueza e evita trabalho desnecessário.

Mas esse modelo que determina as políticas internas das corporações, que serve de base para a ideologia política daqueles que combatem (com razão!) todos os problemas da burocracia e da corrupção que um Estado muito controlador pode produzir, não mais se sustenta ante as inúmeras evidencias científicas que apontam na direção oposta.

Estudos de comportamento que testam como as pessoas reagem a situações de contexto econômico (como escolher entre ceder parte do seu ganho para que todos possam ter ganhos, ainda que menores, ou ter um ganho maior impedindo qualquer vantagem alheia), mostram que mais de 95% das pessoas faz escolhas que beneficiam o coletivo. A professora Stout mostra em seu livro Cultivating Conscience: how good laws make good people (Cultivando a consciência: como boas leis moldam pessoas boas), que este impulso inato para cooperar com o outro depende de quão próximo este outro está e qual o tamanho do sacrifício que temos que fazer para ajudar/cooperar, mas que o mapeamento da nossa atividade cerebral confirma essas estatísticas.

Mas se essa forte tendência a um comportamento cooperativo e altruísta é inata, por que nós abraçamos o individualismo e o egoísmo exagerado? A resposta segundo Lynn está no contexto em que estamos imersos. E uma parte importante desse contexto é a maneira como são financiadas hoje as corporações.

No caso da Fabbrica del Duommo de Milano, o financiamento veio da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, que concentrava o poder político e econômico naquele contexto de nascimento do capitalismo. Nesse modelo, o investidor não tinha um retorno imediato. Ainda que a construção da Catedral de Milão fosse uma demonstração de poder, que atraía fiéis, doações de dízimo, compra de indulgências, concessões, apadrinhamentos e outros meios de capitalização, o empreendimento em si não gerava lucro. O investimento seria recuperado ao longo dos séculos e das gerações. O objetivo não era o retorno financeiro, mas sim fazer algo que não seria possível em uma ou duas gerações, algo que está além do tempo de uma vida humana, que deixará um legado para as futuras gerações.

Hoje, com o avanço do capitalismo, a distância entre o investimento e o lucros quase não existe. Na bolsa de valores, as corporações vendem seu patrimônio fracionado em ações e assim se capitalizam para investir em suas empresas e negócios. Os investidores compram as ações apostando naquele empreendimento. Os executivos trabalham para maximizar o lucro dos acionistas dentro da lógica do homo economicus individualista, fazendo o valor das ações aumentar, gerando um retorno rápido e eficiente para o acionista.

Essa mecânica é bastante sagaz, mas não é inofensiva. Como os acionistas estão distanciados do dia-a-dia das empresas (na maioria das vezes investem em carteiras com ações de muitos negócios diferentes), esse afastamento em relação ao outro (funcionários, impacto no meio ambiente, práticas anti-éticas, etc) desestimula o impulso inato de cooperação. Os executivos que repetem a missão, a visão e os valores da empresa, a responsabilidade social e a preocupação com o impacto ambiental, estão muito mais focados no lucro, pressionados por metas, pelo resultado. Essa relação fria entre investidores e a organização corporativa, que é imposta pelo mercado financeiro, estimula a competição e o individualismo, esvaziando o sentido coletivo original da corporação.

Para Lynn Stout, precisamos recuperar esse sentido original, desenhando leis e regulações para o mercado que aproximem os investidores de seus investimentos, que restabeleçam o sentido de legado para o futuro e para as próximas gerações que se alinha com nosso impulso inato para o bem coletivo. O aquecimento global, a globalização e os avanços da neurociência e da psicologia social são estímulos para repensarmos nossas escolhas econômicas e políticas. Os modelos do passado (e do presente) não nos servem mais.