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A força do mito na política.

O professor e historiador Raul Girardet (1917 – 2013), viu de perto a ascensão do nazismo na Alemanha, a perseguição aos judeus e as atrocidades da guerra. Ele se uniu à resistência francesa convivendo lado a lado com nacionalistas, socialistas, comunistas, unidos no combate a um inimigo comum. Em 1990, publicou um ensaio entitulado Mitos e mitologias políticas que investiga as forças inconscientes por trás dos discursos ideológicos e como nossos medos e esperanças mais profundos nos movem e nos deixam vulneráveis a todo tipo de manipulação.

Uma série de videos (em 7 partes) do prof. Andre Azevedo da Fonseca dissecam o texto de Raul Girardet trazendo para o contexto brasileiro os movimentos de desmoralização e demonização do inimigo, a subsequente busca pelo retorno a uma idade de ouro, e por fim a apresentação de um salvador restaurador da ordem.

A tese de Gerardet é que a maior parte dos discursos que alimentam a imaginação política das pessoas não são baseados em racionalizações programáticas e ideológicas, mas sim num universo mitológico religioso e irracional. Com diz o prof. André, não existe ateu na política.

Para estruturar sua tese, o francês aproxima o messianismo e o milenarismo judaico-cristão de figuras como Napoleão, Hitler e Mussolini, assim como compara o bestiário medieval com a propaganda antissemita que foi fortemente disseminada na Europa antes da II Guerra Mundial. A partir dessas comparações, ele vai  desenhando um roteiro que se repete ao longo da história humana, sempre que um clã, um povo ou um país se vê mergulhado numa crise de valores.

O esqueleto desse roteiro segue a lógica narrativa dos três atos:

Mas essas narrativas podem todas ser invertidas. A irracionalidade é uma das características principais do mito, e por isso o significado de sua trajetória serve tanto para afirmar uma ideia quanto o contrário dessa ideia. Depende apenas de uma mudança de perspectiva.

O velho herói, o jovem impetuoso, o homem providencial e o profeta podem tanto ser os restauradores da ordem quanto os conspiradores e subjugadores, lobos em pele de cordeiro. Assim como o agente das trevas que submete o povo à dominação de forças obscuras, pode ser na verdade o único que tem clareza e visão de futuro, e por isso é demonizado e desmoralizado.

Hoje, no Brasil e no mundo, o debate entre todos os espectros ideológicos da política, até mesmo dos que se consideram pragmáticos, está mergulhado em narrativas míticas. A atração pela irracionalidade do mito é reflexo de uma profunda crise de valores que é global e que se manifesta em sintomas aqui e ali. O número crescente nos casos de suicídio, a epidemia de depressão e outras doenças mentais, a nossa inabilidade para nos comunicarmos na era da comunicação instantânea, o aquecimento global e a possibilidade da nossa própria extinção, são tanto efeitos como causas dessa busca religiosa por uma solução mágica.

Mas essa nossa atração pelo mito é também alimentada pelo forte desejo de nos sentirmos participantes de uma épica batalha entre o bem e o mal. Nós somos os heróis da nossa própria narrativa, portanto do nosso ponto de vista, somos sempre representantes do bem. O mal portanto é um rótulo que colamos naqueles que se opõe a nós. E essa divisão não tem nenhuma relação com certo e errado, justo ou injusto, verdadeiro ou falso. Essa dicotomia é irracional porque é mitológica, porque é religiosa.

O primeiro passo para escaparmos dessa armadilha narrativa é termos consciência dela. Nosso inconsciente é poderoso e essa tendência ao irracional sempre vai nos acompanhar, mas podemos dosá-la com a razão, com democracia, com educação e terapia. Quanto mais pontos de vista diferentes fizerem parte da construção de um projeto político, menos sucetíveis à irracionalidade nós ficamos.