Nunca me sonharam: um conto-de-fadas sobre a educação

nunca-me-sonharam-800x1200Semana passada tive a oportunidade de participar de um cinedebate organizado pelo coletivo de educadores A voz rouca, da cidade de São Paulo, no qual conversamos sobre o filme Nunca me sonharam, focado na realidade dos jovens de ensino médio, dirigido por Cacau Rhoden e patrocinado pelo Instituto Unibanco. A professora da UNINOVE Regina Magalhães[1], convidada pelo coletivo, iniciou a conversa a partir justamente do tema da ideologia.

O roteiro de Nunca me sonharam apresenta positivamente os jovens como a riqueza do país. A pobreza é a limitadora de seus sonhos. As famílias desses jovens têm pouco a oferecer. Mas eles continuam sonhando e podem sonhar mais. Com bons professores, que trabalham apesar das adversidades, eles podem chegar lá. A escola tradicional, autoritária, é vista como a limitante desses sonhos, já que impede os jovens de acessar a faculdade, passar num processo seletivo. A escola com prática, onde os jovens podem discutir, ter voz, criar, onde os professores ensinam matemática baseados na realidade (olhando os ângulos das paredes da escola), é a solução. E os jovens podem sonhar todas as possibilidades: “alguns querem ser vaqueiros, caminhoneiros”, diz uma entrevistada. “Muito bem, o país precisa de bons vaqueiros e caminhoneiros”, ela conclui.

Assim, todo o filme se passa na toada das possibilidades de melhorar a escola pública pela ação de diretores, coordenadores e professores, que pintam paredes, arranjam ônibus com conhecidos para campeonatos de futebol, já que “não se deve esperar nada a partir do segundo escalão do poder público”. “O professor faz a aula”, dizem outros jovens. “Eu queria um laboratório”, diz um professor. “A escola é um laboratório”, diz outro entrevistado.  Então não precisamos de laboratórios na escola pública?  

A aparência e a meia verdade são características de todo discurso ideológico, destacou Regina Magalhães no debate. Outros educadores trouxeram novos termos para explicar a ideologia do filme, como, por exemplo, a pretensão do documentário de falar universalmente, em nome de todos os brasileiros. Em uma rica conversa, elementos como a velocidade dos cortes de cena, a cor e iluminação do filme, a trilha sonora, a forma de nomear os depoentes, o jogo entre cenas “reais” e “simuladas” e a diversidade de temas tratados foram destacados como os traços que construíram um documentário que aspirava cativar o público. Como disse em seu artigo na Carta Educação o professor da UFABC Fernando Cássio, o recorte “dos depoimentos em trechos ligeiros e com pouca nuance é a forma adotada para construir uma narrativa única”. As lacunas dos discursos e a forma de abordar as condições concretas da prática educacional são borrões que denunciam o viés do filme.

Ninguém falou, no documentário, sobre a dupla, às vezes tripla jornada de trabalho dos profissionais nas escolas, que impossibilita até mesmo que os diretores e coordenadores possam fazer com eles um trabalho mais amplo e profundo. Ninguém falou dos baixos salários e da falta professores, que deixa alunos sem reforço escolar – seja ele feito a partir de pressupostos educacionais construtivistas ou com a cartilha Caminho Suave, tanto faz, já que não há docentes para a atividade. Ninguém falou da quantidade de alunos por sala de aula.

Também se passa sem problematizar a questão do acesso à universidade, dos processos seletivos, do “sonho de ser vaqueiro”. Para as classes populares e médias, a principal expectativa da escolarização é que ela garanta melhores condições materiais de vida. Considerando a situação concreta em que vivemos no país, com empregos precários e serviços públicos insuficientes, será que ninguém está preocupado com as condições de saúde, moradia e alimentação do jovem que realizar o sonho de ser vaqueiro? Por que será que tantos jovens entrevistados pelo documentário querem ser advogados e administradores?

Vivemos numa sociedade que produz uma distância salarial astronômica entre executivos de grandes empreiteiras e políticos, de um lado, e auxiliares de enfermagem e caixas de supermercado, de outro. Atrelada a essa diferença, a desigualdade de oportunidades de desenvolvimento intelectual através do seu próprio trabalho entre garis e advogados, em outro exemplo, é gritante. Essa é a divisão social do trabalho profundamente imoral de nossa época. Ainda assim essa leitura da realidade inexiste no filme.

Por que o  documentário não questiona a estrutura produtiva, o desemprego que atinge a grande massa de jovens trabalhadores? Chega a ser irônico o fato de uma instituição bancária tratar de sonhos de adolescentes em nosso contexto histórico atual, no qual certos mecanismos de aplicação financeira – que os próprios bancos promovem –  são tão especulativos que prejudicam o investimento em industrialização e em desenvolvimento tecnológico, estruturas que geram riquezas reais e promovem empregos de melhor qualidade.

A dicotomia entre a escola tradicional e a escola inovadora, democrática – que é, aliás, uma simplificação de uma questão complexa – é debatida, no filme, sem enxergar que os problemas da escola são engendrados socialmente e precisam ser enfrentados coletivamente, politicamente.  Os sindicatos, partidos e associações de professores não existem na educação do futuro do Instituto Unibanco.

Em síntese, o que vemos é uma narrativa de harmonia entre as classes sociais, na qual inúmeras questões concretas e fortemente influentes na prática educativa são ignoradas ou abordadas de forma muito rápida, sendo a suposta “necessidade dos professores saírem do comodismo” a principal propaganda. A condição dos professores como trabalhadores e membros de uma classe social é considerada irrelevante, já que o profissional tem que “arregaçar as mangas e ir para a luta”.

pro-dia-nascer-feliz-adorocinemaUm bom exercício pedagógico seria comparar Nunca me sonharam com o documentário Pro dia nascer feliz, de 2007, dirigido por João Jardim (veja aqui na íntegra). Os problemas da escolarização tradicional, por um lado, e das escolas precárias, por outro, assim como as potencialidades da juventude e da educação escolar estão presentes em ambas produções. Mas o segundo documentário compara as escolas públicas e as particulares da elite, seu público, a rede de (des)proteção que envolve os jovens de cada classe social e o destino social de cada um deles.

A questão estrutural do sistema público de ensino, das condições de trabalho docente e discente é outro ponto fundamental. Um exemplo alarmante colocado por Fernando Cássio em seu artigo é o fato de “2.697 municípios brasileiros possuírem uma única escola, o que inviabiliza a flexibilização do currículo nos chamados itinerários formativos” proposta pelo governo federal na reforma do ensino médio. Mas ações que fortalecem o Estado, como o cumprimento do Plano Nacional de Educação (Lei n. 13.005/2014), são preteridas em relação à agenda neoliberal do Instituto Unibanco e do Instituto Ayrton Senna, do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (o BID) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (a OCDE, que produz o ranking educacional conhecido como Pisa). Contra essas instituições e sua comum ideologia, sabemos que no contexto histórico atual, “currículos flexíveis, habilidades socioemocionais, importação de modelos estrangeiros e privatização da gestão escolar” são apenas novos jargões que dão lucro a algumas empresas e deixam uma forte sensação de fracasso aos educadores, frente à falta de condições mínimas para se fazer um trabalho consistente.

Para os professores, o discurso “faça-você-mesmo” é o presente do Instituto Unibanco. Como o filme aborda certas verdades, como a importância dos jovens e de uma educação mais democrática e significativa, o que ele não fala pode permanecer invisível, levando assim ao sucesso a trama ideológica que apresenta a realidade de forma funcional à classe dominante, que atua, através das instituições acima citadas, em espaços políticos muito mais privilegiados. Para os professores, então, sobra algum questionamento de si, sobra o mal-estar e a culpabilização individuais, alimentados por mais um conto de fadas cinematográfico.

[1] Docente da UNINOVE, socióloga e autora dos livros Escola e Juventude, o aprender a aprender e Discurso do Protagonismo Juvenil

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