Entre museus e outras mídias: O Brasil que (imagina que) luta pelas crianças

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Queria tratar da polêmica da exposição do MAM “acusada de pedófila” e de “ferir o ECA” (Estatuto da Criança e do Adolescente) por ela ter sido super compartilhada nas redes sociais. Acompanhando os grupos conservadores há algum tempo, sei que a bandeira que eles erguem contra a “sexualização precoce das crianças” é antiga, e que entendem que a atuação de grandes instituições como a ONU e o MEC, “inspiradas” e “financiadas” para promover ideias de “revolução cultural”, caminha na direção da destruição das famílias “tradicionais” e da promoção da sexualização precoce, tudo culminando na desorientação dos indivíduos e no…socialismo, que significa, nessa visão, simplesmente um governo autoritário, corrupto e que gera pobreza. Esses grupos conservadores são os mesmos movimentos que criticaram as cartilhas de educação sexual das referidas instituições e também a vacinação de meninas contra o HPV.

Eu não pretendo discutir nesse texto se a exposição fere o ECA ou não, pois isso é uma questão da letra da lei: relevante, mas não mais do que a análise moral da questão. Sabemos que a sala de exposição avisava seu conteúdo para que o expectador pudesse escolher se entraria ou não; sabemos também que a criança estava acompanhada pela mãe, que decidiu acompanhar sua filha no decorrer da performance.

Independentemente da permissão da mãe (que não é critério de moralidade, evidentemente), do ponto de vista conceitual, até mesmo algumas pessoas conservadoras, classificando a exposição de nihilista, afirmam que ela não era erótica. Por outro lado, qualquer pai pode escolher não levar seus filhos a alguma exposição. E caso a performance fira o ECA, pode ser corrigida a classificação etária, para a qual é permitida.

O que eu gostaria de assinalar, tópico que discutimos numa das últimas reuniões na Universidade Livre Pampédia, é como essa exposição num Museu escassamente frequentado foi artificialmente inflada como um mecanismo de jogar os grupos religiosos e medianamente conservadores para o lado dos liberais, entre eles o Movimento Brasil Livre, que fez campanha contra a exposição. Quando uso a palavra artificial, quero assinalar que o contato das crianças com conteúdo “adulto”, como nudez e violência, não é raro em nosso país e tampouco desperta tanta indignação. As imagens abaixo destacam isso:

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Monique Evans na praia tocando em crianças / Crianças convivendo com a violência na favela

Algumas pesquisas de opinião na época dos movimentos pelo impeachment de Dilma, em 2016, revelaram que muitas pessoas que compareceram às passeatas a favor do impeachment eram a favor de um Estado de Bem-Estar Social, com saúde e educação públicas garantidos, ao contrário das entidades líderes das manifestações, entre elas o MBL, ultraliberais.

Essa distância entre pessoas comuns e lideranças políticas é um tema já explorado pela ciência política, e, no caso do MBL, conversas virtuais vazadas do grupo evidenciam que eles trabalhavam para incorporar a população evangélicaao seu grupo político de apoio, e para isso, o que pode ser melhor que um discurso que afirma que acadêmicos, esquerdistas, petistas e etc. estão todos envoltos num grande complô de dessensibilização gradual da sociedade para a falta de pudor, até à legitimação da pedofilia? Assim, ao usar uma linguagem de alarmismo e não se propor a reflexões mais profundas, entra-se no campo da propaganda e da manipulação, mobilizando sentimentos de medo e revolta cega.

Não queremos dizer que a classificação etária da performance não possa ser discutida. Mas a mídia, e especialmente a mídia virtual composta por bolhas de pessoas que pensam de forma semelhante, infla certas questões e esconde outras. Assim, esconde a pedofilia nas igrejas, esconde as violências diversas que as crianças sofrem por sua situação de vulnerabilidade social, esconde até mesmo os efeitos psicológicos e sociais dessa sociedade que é excludente, e, ao mesmo tempo, é a sociedade de consumo, de marketing, de propaganda.

Nesse movimento de lançar os holofotes sobre certas questões e sombras sobre outras, cria-se um grande inimigo: os esquerdistas, responsáveis pela crise, pela pedofilia, pelo bolsa-vagabundo, enquanto outros políticos são premiados e elogiados por serem “de Deus”, serem “a favor do emprego”, serem “gestores”. Veja-se que o atual prefeito do Rio de Janeiro fez questão de afirmar que exposições com temática queer não teriam espaço em seu município.

Todos nós estamos sujeitos a aderir a uma cartilha política ou religiosa e passar a fazer leituras do mundo que cada vez menos confrontem nossos pressupostos racionais e emocionais. Em nosso contexto brasileiro em 2017, entretanto, vemos os conservadores e liberais muitas vezes lançarem uma guerra aos intelectuais, rotulando todos de “elite arrogante” que não reconhece as maravilhas do bom-senso do povo, e assim legitimando comportamentos agressivos contra a classe artística, por exemplo.

Ora, a censura é o pior caminho a ser tomado no convívio de grupos com visões de mundo diferentes. Há de se considerar, por exemplo, que há famílias que procuram que seus filhos tenham uma relação com a nudez questionando o tradicional pudor, considerando que um corpo nu não precisa necessariamente despertar “sentimento de timidez ou vergonha, produzido por algo que possa ferir os padrões morais e/ou éticos”. Em algumas tribos indígenas, por exemplo, a nudez é natural, e isso não acarreta necessariamente a pedofilia.

A educação é trabalhosa, exige lidar com o argumento, o contraditório, a dúvida, a exploração de hipóteses. Exige lidar com artistas que buscam tensionar questões com as quais podemos concordar ou não, mas que têm o direito de fazê-lo. Exige lidar com o pensamento em sua forma mais complexa, não na forma da propaganda.

Lembremos que o teórico da política Thomas Hobbes propôs um Estado absoluto mobilizando o medo da selvageria do estado de natureza. A velocidade da comunicação em nossa era infla a imaginação e, pode, assim, excitar o medo. Em sua obra “O medo à liberdade”, o sociólogo e psicanalista Erich Fromm já havia apontado que a percepção de insegurança e instabilidade das classes médias foi um elemento que favoreceu a ascensão tanto do protestantismo na época da Reforma quanto o crescimento e a manutenção da ideologia nazista na Alemanha. A hostilidade difusa oriunda de problemas não resolvidos – com destaque para a pobreza material e as crises econômicas – pode se canalizar em moralismo e no uso de bodes expiatórios. A história nos ensina, portanto, que as estruturas são mais complexas que a propaganda, mas que há conhecimento que pode nos afastar de maniqueísmos e fúrias.

Litza Amorim

2 respostas para ‘Entre museus e outras mídias: O Brasil que (imagina que) luta pelas crianças

  1. Muito bom, inspirado, tocou em todos os assuntos, abriu o leque e trouxe reflexão. Muitos comentaram nas redes que esse fiasco todo do MBL (cuja militância baixou em peso para atacar primeiro o Santander e depois o MAM e necessário dizer também, exemplificando a obtusidade dos seus militantes, no primeiro caso flagraram um grupo de lunaticos protestando contra o Santander na frente do Bradesco e em outro caso, atacando o MAM do RJ, pensando ser o de SP, ou seja, não se informam direito, parecem que vão “teleguiados”, à semelhança dos antolhos utilizados nos cavalos) e, não podendo elevar o nível político da discussão, querem jogar anzóis onde a esquerda acaba sendo fisgada, (já que, antes de mais nada, há o interesse político, a disputa política) tenho certeza que eles mesmos não tem dúvida que não estão lutando contra a pedofilia, já que nenhum caso ocorreu em museus e que onde ocorre mesmo, eles não “baixam militância”, mas nossa sociedade, pouco habituada à a reflexão, absorve com certa avidez notícias catastróficas como “destruição da familia”, é um jargão que sempre pega e é bom lembrar que estamos em fase de transição, onde a loucura vai atingir niveis alarmantes, e que haverá falsos profetas. Bem nos lembra Kardec para fazer uma análise à luz da razão e Jesus, por sua vez, analisar os frutos da árvore. Esse grupo MBL é uma das piores coisas que aconteceu no Brasil nos ultimos tempos e é triste ver espíritas, com vasta bagagem de estudo republicando suas meias-verdades, suas ratoeiras. Compartilhem mais revista espírita, pouco conhecida ate mesmo entre os espíritas e menos “verdades incontestáveis” publicadas por esses grupos, pois “só a ignorância tem certeza de tudo” e, parafraseando Saint-Exupéry, “és responsável por tudo que compartilhar”. Sejamos o sal da Terra, sabendo discernir mais e condenar menos, tranquilos, pois sou de esquerda e posso garantir que não queremos “destruir a família”, nem defender pedofilia, nem estamos sendo massa de manobra de “líderes ditadores”, esse discurso macartista, demonizando a esquerda, lembra muito o discurso usado na idade média, nas cruzadas e, não tenho dúvida, que ainda são os mesmos espíritos, querendo esse espírito de “Cruzadas” de volta. Sejamos mais lúcidos, mas críticos, afinal, foi uma das grandes lições que nos deixou o codificador.

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  2. Cara, obrigada pelo comentário! Certamente, o que o MBL quer é se projetar como liderança popular, e para isso mobiliza medos e silencia sobre outras coisas terríveis!

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