A educação e o ser humano brasileiro

De um lado, o debate sobre educação no Brasil está ficando cada vez mais complexo, contando com a participação de diferentes pontos de vista, e isso é muito bom. De outro, a polarização dos debates políticos, econômicos e sociais, alimentada pelos escândalos e corrupção e manobras políticas que deixam um gosto amargo de injustiça e descaso na boca da nação, leva a propostas simplistas e fora da realidade na tentativa de se resolver tudo o que está errado o mais rápido possível. O resultado disso é desgaste, frustração e paralisia.

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Propostas como a Escola sem Partido se contrapõem à influência ideológica no desenho do currículo do ensino público, e enquanto a corda é puxada de um lado para outro, abrimos mão da complexidade da convivência, do exercício da tolerância, da consciência da igualdade essencial entre os seres humanos, que são o objeto e objetivo da educação.

Um aspecto absolutamente central que se esvai no debate raso é que qualquer projeto de educação a ser implantado no país deve ser desenhado para o ser humano brasileiro. A ideia de que é o conceito de ser humano que define a forma como vamos educá-lo, perde terreno para as imposições do mercado de trabalho, as estatísticas de evasão, a má gestão, as avaliações internacionais de desempenho, os interesses corporativos dos grandes grupos econômicos, que dominam esse segmento do mercado. Diante de tantas pressões, é fácil colocar alguns aspectos em segundo plano, mas é completamente delirante desconsiderar algo tão essencial como isto.

E o que seria esse ser humano brasileiro? Nós temos nossas peculiaridades como nação, como povo, e ao longo da história alguns pensadores se dedicaram a teorizar sobre isso.  Um deles é José Bonifácio de Andrada e Silva, um dos pais da pátria, que percebeu uma peculiaridade nas relações:

“Nós não conhecemos diferenças nem distinções na família humana, como brasileiros serão tratados por nós o chinês e o luso, o egípcio e ao haitiano, o adorador do sol e de Maomé.” (1810)

Segundo o historiador Jorge Caldeira, a visão de José Bonifácio sobre o povo brasileiro se funda na nossa capacidade de empregar a razão, não a atribuindo a raça ou religião, ao mesmo tempo que mantemos características de raça e religião como elementos de identidade. Nossa formação como povo nos inclina a viver em liberdade, respeitando a liberdade dos outros.

Darcy Ribeiro, outro intelectual que pensou sobre a formação do povo brasileiro, segue por linha semelhante, afirmando que nós fundamos um gênero humano novo, cultural e geneticamente, fruto de muita violência e de muita tolerância:

Outros pensadores como Caetano Veloso, Eduardo Giannetti da Fonseca e Ladislau Dowbour, falam a partir da cultura e da economia e chegam a conclusões muito parecidas. Para eles, nossa cultura é mais forte que qualquer ideologia, e que portanto o modelo de democracia e de relação de trabalho que escolhermos sofrerá forte influencia dessa cultura.

Qualquer reforma ou nova proposta para a Educação deveria dialogar em primeiro lugar com a nossa cultura e não com os modelos ideológicos do mercado, do partido ou da igreja. A brincadeira, a consciência corporal, o jogo cooperativo, a pluralidade religiosa, a musicalidade, dialogam com nosso amor à liberdade, nossa herança yorubá, nossa tolerância. Menos cabo de guerra e mais subi a roseira!

NOTA – quero deixar aqui um exemplo tímido de mudança no currículo que é mil vezes melhor que a nossa eterna reinvenção da roda:

A educação básica na Argentina vai dos 5 aos 14 anos (engloba o que dividimos por aqui em Básico, Fundamental I e II). Recentemente, uma reforma no ensino incluiu aulas de cinema no currículo do ciclo básico. O objetivo é formar público para o cinema argentino que sofre os mesmos problemas de distribuição que o cinema brasileiro, já que a distribuição dos filmes está na mão de grandes empresas. Uma decisão estratégica centrada na CULTURA, que tem efeitos colaterais profundos. Sem distribuir mais dinheiro para a indústria cinematográfica, essa mudança de currículo vai aumentar o público e a demanda por filmes nacionais, vai fazer com que os argentinos conheçam seu país através dos filmes (as diferenças regionais, os problemas e as soluções que são capazes de criar), e o melhor de tudo, vai formar os jovens para lerem e compreenderem a linguagem cinematográfica (as imagens, a edição, o som, a narrativa), preparando as novas gerações para esse século cada vez mais conectado e digital.

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